A convicção e o autoengano do jornalismo econômico
O liberalismo tenta, há décadas, convencer o mundo de que está acima das ideologias. A grande imprensa sempre acredita nisso

Sinceramente, amizadinhas: eu pretendia mudar de tema nesta semana. Mas os jornalões brasileiros não deixaram. Se no post passado o assunto foi política (& grande mídia), agora é impossível evitar a economia (& grande mídia). E vejam bem. Não entendo coisa alguma de economia; entendo um pouco de jornalismo. Por isso, a minha dúvida - as pessoas que escrevem sobre economia nos jornais entendem de economia? E de jornalismo, elas entendem?
Pois na semana passada, rolou o anúncio oficial do conjunto de medidas tomadas pelo governo federal “com o objetivo de adequar a explosão de gastos públicos nos próximos anos e dar sobrevida ao arcabouço fiscal em vigor desde o ano passado”. Traduzindo, o tal pacote de corte de gastos cobrado por Jeová & o mundo desde antes da posse do atual presidente. O desequilíbrio nas contas estatais tem diminuído. O resultado fiscal de outubro melhorou em relação ao mesmo mês de 2023. Ainda que o buraco - R$ 64,38 bilhões - permaneça enorme. As iniciativas do pacote anunciado por Haddad, agora em discussão no Congresso Nacional, podem gerar uma economia estimada em R$ 70 bilhões até 2026.
Não é nada, não é nada, já é coisa pra caramba, né? Em conjunto com a aceleração da atividade econômica e o recorde histórico de geração de empregos, o pacote fiscal deveria elevar o otimismo do mercado e dos analistas do cenário macroeconômico. Aconteceu o inverso. Além de emprestar o megafone a qualquer um disposto a esculhambar o pacote, a imprensa se desdobrou para relativizar a boa fase.
A cobertura de economia dos grandes veículos é movida por uma convicção e por um autoengano. A convicção: o liberalismo é o único caminho para o desenvolvimento de um país. O autoengano: a economia é uma ciência exata, na qual a ideologia não tem lugar. No vácuo do pacote fiscal, essa convicção e esse autoengano desencadearam uma avalanche de críticas e moções de desconfiança voltadas à gestão econômica do governo Lula. E, ato contínuo, geram a condenação de qualquer medida que penda à esquerda, de um modo geral.
O maior feito do diabo foi ter convencido a humanidade de que ele não existe. O maior feito do liberalismo foi ter convencido a opinião pública de que ele NÃO é uma ideologia, e sim um modo “natural” e “objetivo” de interpretar a economia.
Enxugamento do estado. Cortes de investimentos públicos. Privatizações. Desregulamentações. Redução de impostos (para os ricos). Fé cega no santíssimo tripé macroeconômico. Essas medidas são vendidas pelos liberais como requisitos obrigatórios e inquestionáveis para o crescimento da economia. Os liberais vendem essas medidas, a imprensa as propagandeia, o mercado as compra.
Qualquer modelo desviante é imediatamente condenado e associado à irresponsabilidade fiscal. Dentro da filosofia liberal, o maior pecado do estado é gastar - já que a maior virtude do estado é honrar o pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública. Cada centavo investido em saúde, educação, seguridade social é um centavo a menos para os rentistas.
E aí entra a parte do autoengano. Como única filosofia econômica “correta”, o liberalismo também se vende como isento de ideologia. Seu verniz técnico e objetivo refletiria os movimentos “naturais” da economia, em contraposição às intervenções “políticas” promovidas pelo estado. A imprensa embarca de caniço & samburá nessa visão, tratando de legitimar as medidas liberais ao dar amplo espaço a elas e ao tratar seus oráculos como autoridades inquestionáveis. Todas essas medidas têm como consequência inevitável uma gestão econômica que tomba para a direita. Todas essas medidas dependem de decisões políticas invariavelmente ligadas à uma visão conservadora e direitista, pró-mercado, pró-capital e anti-trabalho. No fundo, anti-povo, já que é o povo quem paga a conta.
Mas a imprensa só lembra disso quando é conveniente.
Em sua coluna de 01/12 na Folha de S.Paulo, o sociólogo Celso Rocha de Barros opinou: “A proposta de Haddad (é) o compromisso possível entre o presidente que quer isentar mais de um lado e o Congresso que quer taxar menos do outro.” O financeiro sempre está colado no social e vice-versa, do mesmo modo que o econômico está sempre amarrado ao político. E vice-versa. Rocha de Barros entende isso, o que se reflete em suas análises.
Infelizmente, Rocha de Barros é uma exceção dentro do jornalismo brasileiro em geral e dentro da Folha, em particular. O veículo paulistano soltou, meros minutos depois do pronunciamento de Haddad, uma repercussão abertamente crítica do pacote, apurada junto a operadores do mercado financeiro. Nos dias subsequentes, expressões como “esquálido”, “decepcionante e desastroso”, “irresponsável”, “desencontrado”, “inepto”, “duro golpe nos pobres” foram usadas, em reportagens e colunas, para classificar o pacote. Isso apenas nos títulos.
O tiro de misericórdia foi dado foi pelo insuspeito (pois integrante do primeiro governo Lula) Marcos Lisboa. Em uma longa entrevista, a figurinha carimbadíssima - não por acaso, também articulista da Folha - decretou, apocalíptico, que os investidores estão abandonando o Brasil e que o pacote é “tímido, (com) medidas mal desenhadas e impacto marginal”. A cremação se deu dois dias depois, na coluna da economista (?) norte-americana Deirdre Nansen McCloskey, uma vovô ancap que deu aula a Paulo Guedes em Chicago (!). Ela encerra o texto assim: “Volte, Jair. E coloque novamente um liberal no comando da economia.” O “Jair” é aquele mesmo.
No Rio de Janeiro, O Globo seguiu a toada, em passo mais moderado. “Quebra-galho fiscal”, “promessa que não entrega”, “reforça o isolamento da equipe econômica”, “dúvidas sobre a redução do risco fiscal” foram algumas das palavras destinadas ao embrulho de medidas do governo. “Com ou sem pacote, mercado apoiará adversário de Lula em 2026”, trombeteou um colunista. “Impacto insuficiente e cifras que não parecem críveis”, diz outra articulista (esta oriunda de um hypadíssimo escritório de gestão de ativos financeiros).
A curiosa obsessão do jornal da família Marinho com os bastidores de caserna também se manifestou. O tal vídeo da Marinha com críticas ao pacote mereceu muita atenção da setorista das Forças Armadas, que o repercutiu em mais de uma nota.
Porém, mais curiosa ainda é a presença de um certo personagem da política sul-americana em ambos os jornais, em um paralelo irresistível à percebida irresponsabilidade fiscal do governo petista. Ao mesmo tempo que desancavam em uníssono Haddad & Lula, Folha e Globo abriram espaço em suas páginas (virtuais e de papel) para Javier Milei, o presidente da Argentina que vem conseguindo conter a hiperinflação em seu país às custas de imensos sacrifícios impostos à população mais pobre (que só aumenta).
A bola veio cantada lá da Inglaterra, pela revista The Economist. A vetusta bíblia do capitalismo liberal botou Milei na capa de sua edição de 27 de novembro. A entrevista, recheada de elogios aos “cortes brutais” feitos na estrutura estatal argentina e à “fé de Milei no livre mercado”, foi traduzida e republicada pela Folha um dia depois. A primeira menção aos duros impactos sociais resultantes da ~revolução~ ancap movida pelo mandatário portenho só vem no 13° parágrafo. O Globo aguentou esperar o fim de semana. Mas na segunda-feira, 02/12, tascou na página 2 um editorial com o título “Milei dá lição de disciplina fiscal para o continente”. Quem adivinhar o teor do artigo ganha um alfajor.
Entre a demonização de Lula e a glorificação de Milei, a imprensa segue comprando o receituário liberal e o revendendo como única salvação possível para a economia. Talvez porque as consequências negativas dos ajustes liberais sempre sejam mais suaves para seus leitores de classe média do que para os pobres (que leem nada, ou só o que chega no WhatsApp, se tanto). Ou talvez porque os donos da imprensa não sofram consequência negativa alguma.
Então, respondendo às dúvidas lá de cima: as pessoas que escrevem sobre economia nos jornais e sites podem não saber de economia, ou de jornalismo. Mas sabem para quem estão escrevendo.
Análise cirúrgica, parabéns!