A lição mais importante de 'Severance'
Parece ficção científica, mas não é: segunda temporada do seriado instiga reflexões existenciais sobre trabalho e identidade
ATENÇÃO: este post contém spoilers da segunda temporada de Severance. Proceda por sua conta e risco.
Há quem diga que a era de ouro da ficção televisiva, iniciada (grosso modo) com a estreia do seriado Família Soprano, em 1999, se encerrou. As causas apresentadas para o anunciado fim são várias: excesso de continuações, spin-offs, reboots e refilmagens, excesso de oferta (medíocre) devido à guerra entre os serviços de streaming, as mudanças nos modelos de negócio dos mesmos serviços (que estão cada vez mais parecidos com a velha e nem sempre boa TV a cabo).
Na era de ouro, séries tomaram o lugar do cinema como veículo principal de entretenimento audiovisual de qualidade. Com sua duração alongada, os seriados abriram espaço para personagens mais complexos, narrativas multifacetadas, experimentos de linguagem. E, consequentemente, mais espaço para interpretações e maneiras alternativas de desfrute estético. Tomemos, por exemplo, a minha série favorita de todos os tempos. Pode ser vista como uma recriação minuciosa dos bastidores da publicidade nos anos 1960. Ou como um detalhado estudo do vazio na alma masculina. Ou como um panorama das mudanças sociais nos EUA durante a década da contracultura. Ou apenas como um seriado muito bem produzido, escrito, dirigido e interpretado.
Enfim. Mesmo que a tal era de ouro tenha acabado, ainda há muita coisa boa para se assistir por aí. Como Severance, série da Apple TV cuja segunda temporada se encerrou na terceira semana de março. (Não gosto muito do nome traduzido oficial, Ruptura; como alguém comentou, o titulo perfeito seria Repartição.) Se você curte séries de TV e está inteirado nos tópicos cobertos por esta publicação (comunicaçãoculturadigitalsustentabilidademundocorporativoeinovação), decerto não precisa que eu explique do que se trata a série.
Espécie de interseção entre The Office, Lost e Black Mirror, Severance é o tipo de produção feita sob medida para as múltiplas interpretações aludidas no segundo parágrafo. A premissa básica é uma óbvia alegoria sobre o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Ou a falta de equilíbrio, já que, na distopia imaginada pelo roteiro, a tecnologia soluciona a questão da forma mais extrema possível: os funcionários da megacorporação Lumon passam por um processo de “ruptura cerebral” que divide sua personalidade em duas metades, uma que só existe no escritório, outra que só existe fora da empresa. Confesso que, enquanto assistia aos primeiros episódios, a ideia me pareceu fascinante - ainda que sujeita a óbvios riscos. Seria a única maneira 100% garantida de não levar o estresse do trabalho para casa!
O desenrolar torna claro que a proposta é uma enorme furada, e que só mesmo indivíduos com vidas miseráveis (como o protagonista Mark), solitários terminais (como Irving) ou desajustados crônicos (Dylan) topariam se sujeitar ao procedimento. Conheço pouquíssimas pessoas que AMAM seus trabalhos e AINDA SÃO PAGAS por isso; quase todo mundo trabalha porque apenas porque precisa de dinheiro, e quase ninguém se sente genuinamente realizado com sua rotina profissional. Ainda assim, não acredito que, na vida real, alguém toparia abrir mão de 1/3 de seus dias úteis (contando a hora de almoço) fazendo sabe-se-lá-o-que-e-com-quem no escritório.
Os personagens de Severance sabem nada sobre seu próprio cotidiano no trabalho, e vice-versa. A ideia seria criar funcionários 100% dedicados ao trabalho e não-funcionários 100% desestressados durante seu tempo livre. Não demora para que esse sonho das gerências de RH se transforme em uma catástrofe. No mundo real, creio, seria ainda pior. (Por falar em RH da Lumon, a seção “Carreiras” do site oficial da empresa tem uma vaga anunciada: chefe de operações de segurança. Quem viu o episódio final da segunda temporada sabe que se trata de um emprego muito, muito arriscado.)
Mas para além da proposta central, a realidade apresentada em Severance permite outros insights. O trabalho na Lumon é um exemplo radical de bullshit job; tarefas sem sentido aparente e (a princípio) sem resultado concreto, com metas aleatórias e um propósito que nem os empregados sabem qual é. Talvez nem os gerentes saibam. Os bizarros rituais de “gestão de pessoas”, “avaliação de desempenho” e “engajamento entre colaboradores” só elevam o senso de desorientação e surrealismo.
(O tema me interessa pois, não raro, sinto que exerço um bullshit job na minha labuta em comunicação & sustentabilidade. Não porque o trabalho seja inútil ou sem sentido, mas porque meu trabalho é tratado como inútil e sem sentido pelo mundo corporativo. Comunicação nunca foi prioridade das empresas, e nunca será. Comunicação sobre sustentabilidade, menos ainda. Entre o discurso e a prática há um abismo maior que o buraco na camada de ozônio.)
Nesse plano, o seriado criado por Dan Erickson se aproxima de uma abordagem clássica na ficção cientifica: a apresentação de um mundo alternativo que na verdade é a nossa própria realidade contemporânea, caricaturada de modo hiperrealista. Todo mundo que trabalha em escritório já perdeu tardes intermináveis em tarefas inúteis. Ou foi obrigado a participar de festas da firma constrangedoras. Ou levou um esporro do chefe sem nem saber por qual razão. Ao menos em Severance os personagens esquecem dessas experiências desagradáveis ao deixarem o escritório. (Até que começam a lembrar.) É a distopia nossa de toda segunda-feira de manhã, só um tiquinho mais absurda.
Na segunda temporada, a série se torna progressivamente mais esotérica, em todos os sentidos possíveis. Uns poucos mistérios são desvendados, mas outros ficam ainda mais misteriosos. A Lumon revela ser mais uma espécie de seita do que uma empresa… mas não fica 100% claro o que, ou quem eles cultuam. O passado e a vida de alguns personagens ganham mais detalhes; em compensação, surgem outros personagens enigmáticos. Algumas perguntas cruciais são respondidas, mas os GRANDES “por quês?!” sobre a história ficaram para a terceira temporada, já confirmada. E ESSA PORRA AQUI, CACETE, que PORRA foi essa?!
Mesmo sem avançar muito na narrativa principal, Severance S02 seguiu despertando reflexões sobre o trabalho na era do capitalismo tardio. Os conflitos causados pela separação entre innies (os funcionários no escritório) e outies (suas versões “civis”) se aprofundam. Uma subtrama particularmente tocante é dedicada a Dylan G. (Zack Cherry). Demitido da Lumon, ele não consegue arrumar outro emprego. Sua condição de severed o torna alvo de preconceito. Recontratado pela sinistra megacorp, ele (não ele; seu innie) recebe o “privilégio” de receber visitas de sua esposa durante o expediente. A esposa descobre que prefere o innie ao outie. Dylan, o innie, então pede demissão. Mas seu outie recusa o pedido. Ele explica as razões em uma carta… escrita para si mesmo:
“Espero que, um dia, ela veja em mim o que vê em você. Enquanto isso, sendo bem franco, gosto de saber que você está aí. Sendo assim, se quiser se demitir, tudo bem.
Mas acho que você deveria ficar.”
É um dilema típico da “masculinidade frágil” contemporânea. Ter um emprego empodera o cara, o torna orgulhoso, autoconfiante e viril. O innie, que deveria ser a menor parte da identidade de Dylan, transforma-se na porção dominante - e o trabalho, sua real razão de existir. Mesmo que seja um bullshit job em uma empresa assumidamente maligna.
O ponto culminante da temporada é o décimo e último episódio, no qual Mark (após uma complicada série de intervenções cirúrgicas & psíquicas) consegue “conversar” com seu innie. A ideia é tentar convencer o funcionário Mark S. a ajudar a pessoa Mark Scout a resgatar Gemma, a mulher de Scout, mantida refém pela Lumon. O Mark “de fora” tomaria o controle do Mark “de dentro”, chutaria o balde e denunciaria a empresa por seus crimes.
Aí cai uma ficha existencial seriíssima para os innies. Há muitas pessoas que veem o trabalho como o fator que lhes dá sentido à vida. Para Mark S. e os outros innies, isso não é uma metáfora ou sequer uma opção pessoal - o trabalho é literalmente a única vida que eles conhecem. Se o Mark “de fora” desiste da Lumon, o Mark “de dentro” deixa de existir. O emprego pode ser bizarro, a empresa pode ser cruel, mas é tudo que ele conhece. E na Lumon ele tem uma namorada, Helly R. (ou Helly E.?). Lembrei daquele velho chiste: “Quem tem amante no trabalho não gosta de feriado".
É outro dilema antigo na ficção científica, que deriva de questionamentos filosóficos mais velhos ainda: o que define a humanidade? O que separa o ente do ser? O que representa nossa essência: o corpo, a mente ou a alma?
O innie tem direito a ser considerado uma pessoa completa, de verdade? Tem direito a ter uma vida além do trabalho? Ou é apenas um fragmento, um apêndice, uma comodidade? A incerteza sobre o futuro do Mark innie gera um diálogo entre as duas metades do cérebro:
MARK SCOUT, o outie: Eu te criei como um prisioneiro e como uma fuga. A Lumon me disse que você seria feliz, que os innies são contentes e, como acreditei neles, você tem vivido um pesadelo há dois anos. (…)
MARK S., o innie: Sabe, "pesadelo" é a palavra errada. Porque a gente acha meios de fazer a coisa dar certo... de se sentir inteiro. Por isso, o que você me pede assusta. Porque, seja o que for essa vida... é tudo que temos, e não queremos que ela acabe. (…)
MARK SCOUT: Eu diria a mesma coisa no seu lugar. No entanto, a Lumon não precisa ser sua vida toda.
Mas, na verdade, nesse caso específico… precisa, né?
Quantos de nós “acham meios de fazer a coisa dar certo” no trabalho, mesmo quando nada está dando certo? Quantos de nós botamos a máscara do innie todas as manhãs, simplesmente porque não temos outra alternativa? Quantos de nós se agarram ao emprego e negligenciam a vida pós-expediente? O innie não tem escolha. E nós?
A melhor ficção científica não é necessariamente aquela que nos leva a confrontar aliens e dimensões paralelas etc. E sim aquela que tem a maior ressonância - por meio de metáforas ou alegorias - com a realidade vivida pelo público. Eu já tive, comigo mesmo, um diálogo como o descrito acima. Aposto que muita gente passa por isso toda manhã de segunda-feira. E de terça, e de quarta…
Repita para si mesmo: a empresa para a qual eu trabalho não precisa ser toda a minha vida.
E essa constatação não vai fazer de você um mau profissional. Às vezes, esquecemos disso. Severance está aí para nos ajudar a lembrar: você é você no trabalho e fora dele. Você não deve a vida à empresa que paga seu salário. Antes de arrumar seu emprego atual, você já existia, e vai continuar existindo. Não somos innies. Eles não existem.
Ou existem?