Já passou da hora de deixarmos a mesa
Debates online com trolls reacionários podem render cliques e seguidores, mas não contribuem para as causas progressistas
“Se dez pessoas estão sentadas a uma mesa, um nazista se senta com elas e ninguém se levanta, então há 11 nazistas sentados a uma mesa.” Com algumas variações, essa microparábola sobre os limites da tolerância na política tem sido difundida nas mídias sociais há bastante tempo. A origem é meio incerta: a versão mais popular garante que se trata de um ditado popular na Alemanha (pós-1945, claro), mas há quem discorde.
A moral da historinha é simples. Diferenças ideológicas não podem (não devem) interferir em relacionamentos interpessoais, mas é necessário traçar uma linha. O suposto dito germânico sugere que o nazismo é algo tão nocivo, que a mera convivência com um praticante declarado da ideologia é suficiente para “contaminar” todo o resto do grupo. Quem discorda, no fundo - ou mesmo no raso - também simpatiza com Hitler. Confrontados com um nazista, a obrigação de todos, progressistas ou conservadores, é levantar-se da mesa.
Em geral sou contra esse tipo de retórica, que não raro descamba para a invocação da Lei de Godwin:
"À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%."
No entanto, concordo com o raciocínio que informa a parábola das dez-pessoas-sentadas-à-mesa. Não dá para ser tolerante nem conviver com tudo, como já dizia Popper. É preciso um critério para definir o inaceitável. Só assim estaremos preparados para reconhecê-lo, quando ele chegar. Caso contrário, você corre o risco de falar demais… e acabar dando bom-dia a cavalo.
Jones Manoel não se levanta da mesa quando chega um “nazista”. Pelo contrário: ele puxa a cadeira e engata uma conversa com o sujeito. Um dos mais conhecidos militantes virtuais de esquerda do país, o historiador hitou na semana passada ao exibir em seus canais de mídia social uma entrevista (ou debate?) com Wilker Leão, estrela em ascensão na extrema direita internética. Leão notabilizou-se pela odiosa prática de provocar bate-bocas com alunos e professores de universidades, buscando “denunciar” a “doutrinação marxista” no ensino superior.
(DISCLAIMER: “Nazista” está usado aqui entre dez mil aspas, ok? Não estou classificando Wilker Leão de nazi, mesmo porque nem o conheço suficientemente para tanto. E não quero conhecer. É bom deixar isso claro, ou posso incorrer no equívoco abordado no post da semana passada.)
Não assisti ao debate ao vivo, nem consegui achar uma gravação. Há, no Instagram de Jones, um monte de cortes do evento, que também ignorei. Não tenho interesse em particular no conteúdo de Jones Manoel e muito menos em qualquer coisa que diga respeito a Wilker Leão. Mas tomei contato com a repercussão do bate-papo, que rolou no ̷X̷ Twitter (no qual não estou mais inscrito) e transbordou para o Bluesky.
O diálogo printado acima evidencia alguns dos (muitos) equívocos da comunicação de esquerda nas plataformas. A começar pela mesa infestada de (literais) nazistas um dia conhecida como Twitter.
1) A busca pelo ‘diálogo’ é um erro.
Muitos progressistas que insistem no ̷X̷ Twitter acreditam que estão combatendo o bom combate. Acreditam que é possível conquistar corações & mentes nas mídias sociais, expor suas ideias e desmascarar a retórica dos reacionários. Foi a justificativa de Manoel para aceitar o debate com Wilker Leão: “desmoralizar” o sujeitinho.
Esse pensamento é, na melhor das hipóteses, ingênuo e desinformado. Há muito tempo, o “diálogo” entre polos ideológicos divergentes nas plataformas não existe; tenho dúvidas mesmo se chegou a existir algum dia. Isso porque as pessoas postam (e consomem) apenas conteúdos que reforçam suas convicções prévias, e só consideram as ideias contraditórias para bater boca - no que acabam por reforçar o reforço às suas convicções. Não se consegue transmitir mensagem política alguma nas redes sociais, a menos que o receptor já acredite de antemão na mensagem emitida. Isso vale para a esquerda e para a direita.
Jones Manoel, veterano do YouTube e do ̷X̷ Twitter, obviamente sabe disso. Ele pode ter “desmoralizado” o imbecil, mas essa percepção foi exclusiva dos tuiteiros de esquerda. Nenhum admirador de Wilker Leão deixou de admira-lo. Pelo contrário, o debate provavelmente apenas os convenceu ainda mais da importância de enfrentar a esquerda. Mais uma vez, o saldo da troca de ideias foi zero. (Exceto para o próprio Jones, que comemorou os “quase 8 mil novos seguidores no Insta”.)
2) Permanecer no ̷X̷ Twitter é um erro.
Em junho de 2025, não há razão alguma para um progressista manter um perfil no ̷X̷ Twitter. A menos, claro, que você se sinta à vontade em compartilhar uma mesa, quer dizer, engajar-se com postagens de nazistas de verdade. Como Kanye West, que lançou no começo de maio uma canção chamada “Heil Hitler”. Todas as plataformas digitais recusaram-se a divulgar a música… exceto o ̷X̷ Twitter. Enquanto o resto do mundo lamentou profundamente, no site de Elon Musk a música foi um tremendo sucesso, repostada e remixada por militantes de extrema direita.
Quem ainda usa o ̷X̷ Twitter deve ter seus motivos. Mas também deve estar ciente de que está trabalhando de graça para um oligarca multibilionário tecnofascista, que transformou a plataforma em porto seguro para reacionários extremistas. Decerto que para figuras como Jones Manoel, do alto de seus mais de 250 mil seguidores, ter um perfil lá é um investimento em sua própria marca pessoal. (Por isso, a comemoração sobre os números do “Insta”.) Se ele acha que a relação custo/benefício de se conviver com literais nazistas é positiva, beleza. Mas ainda acho um erro.
3) Aliás, a mídia social em geral é um erro.
Acredito dicumforça, e quem me acompanha já sabe disso, que as plataformas de mídia social não servem para divulgar conteúdos progressistas. Por favorecerem o dissenso (em vez do consenso), o individualismo (em vez do coletivo) e a reação instintiva (em vez da resposta ponderada pós-reflexão), essas plataformas são antitéticas ao ideário progressista/esquerdista.
Assim sendo, não acredito na possibilidade de a esquerda “virar o jogo” nas mídias sociais. É um território francamente hostil ao pensamento esquerdista e a suas formas de implementação. Se alguém ainda acreditava na neutralidade ideológica das big techs, a recente adesão em massa dessas empresas ao trumpismo dirimiu qualquer dúvida.
Há quem defenda a adoção duma comunicação mais memetizável para expandir o alcance das ideias de esquerda - é o que o Daniel Duncan chamou de “MBLismo de esquerda” no segundo print do ̷X̷ Twitter postado acima, e que outros chamam de “janonismo cultural”. O problema é que esse tipo de comunicação pode ser ótimo para gerar bate-bocas viralizáveis, mas é péssimo para difundir mensagens progressistas. Muitos cliques e compartilhamentos, poucas pessoas mudando de opinião. Os “quase 8 mil novos seguidores” não se traduzem em disseminação efetiva de ideias transformadoras.
Em um mundo no qual toda a comunicação passa pelas plataformas, a esquerda enfrenta um desafio formidável para se fazer ouvir. Por isso, Jones Manoel traduz uma angústia sincera ao perguntar “Como desmoralizar o discurso de pânico moral?” etc. Rebato sendo ainda mais sincero: nas mídias sociais, não vai rolar. Pelo menos, não do jeito que as mídias sociais são hoje. Uma mudança radical de paradigmas - comunicacionais, econômicos, tecnológicos, regulatórios - será necessária para mudar esse quadro. Vai rolar?
4) Dar atenção aos reaças é um erro.
Recapitulando: só viraliza nas plataformas quem provoca o bate-boca. Pela lógica do ativismo digital, a esquerda precisa confrontar a direita para ver suas discussões em destaque nos feeds da rapaziada. Mas é público e notório que não existe exposição negativa nas mídias sociais. As métricas não diferenciam crítica de elogio; um RT com xingamento vale tanto quanto outro com uma declaração de amor.
Daí, a crítica válida de Daniel Duncan: debater com Wilker Leão é uma forma de chancelar o discurso dele, pois atrai mais atenção para sua existência. Não importa que ele tenha sido ridicularizado no debate, sua mera presença já sinaliza uma importância. Jones Manoel rebate (também de forma perfeitamente válida): o camarada já tem 1 milhão de seguidores, ele não depende da esquerda para ficar em evidência.
Na real, o principal problema não é a projeção extra que o Leão ganha. É o fato de um militante de esquerda despender tempo e esforço (mental, que seja) com um adversário, em vez de focar em suas próprias ideias. Mais uma vez, a comunicação progressista se curva ao imperativo do algoritmo. Conteúdos reativos, que despertam sentimentos negativos, chamam mais a atenção do que postagens propositivas.
Sabe quem domina a arte de propagar conteúdos reativos, que despertam sentimentos negativos? A direita.
Não é possível debater com um troll reacionário sem se rebaixar ao nível dele. E é justamente isso que o troll quer. Ganhar seguidores e retuites não compensa o gasto de tempo e de energia psíquica, que poderiam ser direcionados para iniciativas positivas.
No contexto descrito acima, a parábola (pseudo?)germânica ganha uma releitura. Algo tipo “Se dez pessoas estão sentadas a uma mesa e um nazista se senta com elas, eu vou chama-lo para um debate online porque sei que a parada vai viralizar, mas vocês, meus seguidores, vocês sabem que eu não sou nazista, né? 😜”
Como força transformadora da sociedade, a esquerda não tem coisa alguma a ganhar dialogando online com reacionários. As plataformas são parte do problema, e gerar conteúdo para alimentá-las - mesmo conteúdo crítico - só retarda a transformação almejada. Mesmo que esse fosse o caminho para “virar o jogo nas redes”, o impacto real continua sendo nulo. Para usar um conceito emprestado da Física, a temperatura da polarização ideológica nas plataformas já chegou ao zero absoluto: todo o movimento de ideias cessou e a troca de calor, isto é, de opiniões construtivas, é nula.
Mas ainda rende uns 8 mil seguidores novos no Insta, né.