Na era da influência digital, golpe do vigário já virou conteúdo
Você investiria em um ativo financeiro cuja único fator de atração é a fama da celebridade que o promoveu? Pois é, eu também não
Duvido que você saiba quem é Haliey Welch. (“Haliey” mesmo, não “Hailey”, ou “Halley”.) Talvez - talvez, se você for do tipo cronicamente online - já tenha ouvido falar da Hawk Tuah Girl, um desses fenômenos virais capazes de transformar anônimos em celebridades globais instantâneas. Pois: Haliey Welch é a própria Hawk Tuah Girl, ou, abrasileirando, a “garota da cuspida no p**”. Talvez você até saiba o que Hailey fez para merecer a fama. Mas duvido que consiga explicar o porquê dessa fama.
O vídeo acima, postado em junho último, acumulou cerca de 9 milhões de visualizações em uma semana. Em setembro, a garota da cuspida já tinha lançado um podcast, no qual se apresenta como “o maior meme de todos os tempos”. Hoje ela conta com 2,6 milhões de seguidores no Instagram. E por que? Por que alguém seguiria uma pessoa como ela? Por que outros famosos (supostamente famosos “de verdade”) topariam ir a seu podcast?
Ora, por quê. Porque é assim que as mídias sociais funcionam. A magia da era do influenciador digital é justo essa: seu caráter aleatório. E a total desconexão entre o valor real do “conteúdo” oferecido e o valor percebido pelos consumidores de tal conteúdo. No mundo pré-internet, alguns segundos falando besteiras de gosto duvidoso não tornariam ninguém famoso. Hoje, essas besteiras valem milhões de dólares.
Até aí, estamos entendidos. Ou não. A fama de Haliey Welch (e a de 99,9% dos fenômenos virais) não tem uma explicação racional. Ou talvez tenha 2,6 milhões de explicações. Mas tudo bem. Forget it, Jake, it’s social media.
Agora eu tenho outra pergunta. Você investiria seu dinheiro em um (cripto)ativo garantido pela garota da cuspida no p***? Muita gente respondeu “sim” quando Haliey lançou sua própria criptomoeda, o $HAWK. Na madrugada de 4 de dezembro, uma quarta-feira, a moeda virtual começou a ser comercializada. Em poucas horas, o valor do ativo em circulação chegou perto dos US$ 500 milhões. Na tarde de 5 de dezembro, o $HAWK havia sofrido uma desvalorização de 95%. Quem comprou a moeda às 10h do dia 04/12 pagou US$ 0,002094 por token. Dezoito horas depois, o troço valia apenas US$ 0,000632. No momento em que digito este post (12/12), a cotação até tinha subido um pouquinho. Bem pouquinho mesmo.
Analistas do mercado cripto logo levantaram a lebre. A subida vertiginosa e o crash idem cheiravam a informação privilegiada. Investidores furiosos apontaram a suspeita de que inside traders - em conluio com Haliey - compraram na baixa cerca de 90% do $HAWK disponível, iniciando a disparada do preço. Quando os otários, desculpem-me, quando os investidores legítimos embarcaram na onda, os insiders rapidamente se desfizeram dos ativos, embolsando o lucro e jogando a cotação no subsolo. A garota da cuspida e sua equipe negaram ter participado do esquema.
Como classificar um “investidor” que aplica seu suado dinheirinho em uma memecoin - um ativo virtual cujo “lastro” é a fugaz celebridade de um meme? Parece tudo muito novo e disruptivo, mas especulação, informação privilegiada e golpe do vigário já existem há milênios. A diferença é a velocidade e o alcance que as plataformas web emprestam aos golpistas de hoje. Todos os dias, um malandro e bilhões de otários fazem login nas plataformas. Quando eles se encontram, alguém faz “negócios”.
Nada do que se vende (real ou metaforicamente) nas plataformas tem garantia de entrega, muito menos de satisfação do consumidor. Isso vale para o publi ou para a criptomoeda. Você não leu os termos de uso quando criou seu perfil?
“Investir” em memecoins é apenas mais uma extensão da plataformização da vida. As escolhas na web são apresentadas ao público por algoritmos, publicações impulsionadas, fenômenos virais extemporâneos. Menos mal se a opção em questão é dar like ou dislike no vídeo de um influencer. O pior é quando a mesma lógica (sic) é aplicada à escolha de uma carreira, de um candidato a cargo público, ou mesmo de uma aplicação financeira. A profissão, o voto, o investimento… é tudo “conteúdo”. Quem comprou a moeda virtual de Haliey Welch não fez um investimento. Na verdade, consumiu mais um conteúdo produzido pela influencer.
Só que esse tipo de “conteúdo” não é nem um pouco virtual e tem impacto real em suas vidas analógicas. Mas para o usuário, não faz diferença. A relação que ele tem com o coach, com o político, e agora até com os ativos financeiros, é a mesma mantida com a celebridade de Instagram. Se você não consegue explicar seu fascínio pela Hawk Tuah Girl e continua fascinado assim mesmo, por que não entregar a ela seu dinheiro também? Na pior das hipóteses, seu prejuízo também pode viralizar - e te transformar em um influencer.
A debacle do $HAWK me lembrou o caso local do Girabank, a instituição financeira promovida pelo influencer Carlinhos Maia (e da qual ele era sócio). Releia a frase anterior e clique no link. Pessoas (de verdade) confiaram dinheiro (de verdade) a um banco (virtual) propagandeado por um (suposto) humorista. Segundo o próprio Girabank, nada menos que 2 milhões de pessoas baixaram o aplicativo do banco no dia do lançamento, propagandeado por Maia, que se dizia proprietário da fintech (no começo da história).
Como classificar um “investidor” que deposita seu suado dinheirinho em um “banco” digital recém-criado, cujo maior ativo era a (fugaz?) celebridade de seu (suposto) fundador? Um “banco” que sequer constava da lista pública de instituições reguladas pelo Banco Central?
Li há pouco um texto com uma hipótese boa sobre $HAWK, memecoins e golpes virtuais em geral. “(O esquema aplicado por Haliey Welsh) já é tão conhecido, que causa espanto ver pessoas investindo dólares de verdade em algo que parecia ser a mais óbvia das armações com criptomoedas. Uma explicação bem mais provável (…) é que os investidores, como a própria Welsh, esperavam retirar seus lucros antes dos otários - aqueles que procuravam ‘A Sacola’ (de dinheiro), mas não conseguiram agarra-la a tempo.” É como entrar num esquema de pirâmide sabendo que um dia a casa vai cair, contando com a própria astúcia para escapar antes do prejuízo.
Dinheiro é coisa séria. Ou deveria ser. Mas não é esse o endgame de todo processo de plataformização? Começar de baixo, “investindo” como influenciado, e pastar até se tornar influenciador? A Hawk Tuah Girl conseguiu. E a turma que embarcou em sua criptomoeda furada deve estar orgulhosa por ter construído um pedacinho dessa história… até que chegue a sua vez de se dar bem.