Negando o futuro com uma canetada
Agora é oficial: o governo dos EUA não acredita mais nem no efeito estufa, nem na mudança climática

Pouco importa o nome que dão à coisa. Já chamaram de “efeito estufa”, de “buraco na camada de ozônio”, de “aquecimento global”. O consenso por ora é rotular de “mudança climática”. Na prática, é aquilo que sentimos na pela de forma cada vez mais intensa, a cada ano. Os lugares quentes estão cada vez mais quentes (quando não são varridos por enchentes, tempestades colossais e massas de ar polar imprevistas). E os lugares frios também estão esquentando como nunca (se não rolarem nevascas recordes, ciclones e elevações do nível do mar).
Também na prática, não há dúvida sobre a influência da ação humana - a poluição em geral e a emissão de gases do efeito estufa (GEE) em particular - sobre essas alterações. Desde a Revolução Industrial, consolidada na segunda metade do século XIX, a temperatura média do planeta vem aumentando em conjunto com a intensificação dos impactos ambientais gerados pela atividade humana. Mais de 99% da comunidade científica mundial concorda com essa ideia. É um consenso mais amplo do que o vigente em estudos sobre o papel da nicotina nos casos de câncer.
Donald Trump, infelizmente, não acredita na ciência.
O atual presidente dos EUA autorizou sua Agência de Proteção Ambiental (EPA) a revogar uma declaração conhecida como “a constatação de perigo”, emitida em 2009 na época de Barack Obama. O texto, que explicita a ligação direta entre o aumento de emissões de GEE e a mudança climática, vem servindo desde então como base científica para as leis que limitam o volume de GEE gerado por motores a combustão, fábricas, usinas termelétricas e outras fontes industriais.
A EPA anunciou na última semana de julho sua proposta de anular a “constatação”. Alegação: as leis baseadas na declaração impuseram regulações que custaram mais de US$ 1 trilhão e “(limitaram) a liberdade de escolha dos americanos para adquirir automóveis seguros e acessíveis.” Na prática (de novo), a EPA, responsável por emitir licenciamentos e monitorar impactos ambientais negativos, vai anular todas as regulações que limitam o volume de emissões nos EUA. Para não deixar dúvida alguma sobre de que lado o governo está, o anúncio oficial foi realizado em uma revendedora de caminhões.
A política ambiental de Trump - negação da mudança climática, desregulamentação, corte das energias renováveis e incentivo aos combustíveis fósseis - já era amplamente conhecida. A decisão da EPA, entretanto, marca um avanço (retrocesso, na verdade). Segundo o The New York Times, trata-se do “mais relevante passo no desmonte dos esforços do governo federal na gestão climática (…e) pode tornar significativamente mais difícil a tarefa de, no futuro, controlar a poluição gerada pela queima de carvão, óleo diesel e gasolina.”
Para ter uma ideia do impacto dessa decisão, basta pensar que os EUA respondem por cerca de 11% das emissões mundiais, atrás apenas da China. Mas as emissões geradas pelo transporte (de pessoas e cargas) no país de Trump são superiores ao total emitido pelo Brasil. Com uma canetada, o laranjão desprezou as evidências científicas sobre a mudança do clima. E contribuiu para tornar o futuro mais difícil para todo o mundo, por mera convicção ideológica.
“A guerra não existe para ser vencida, e sim para ser perpétua. (….) A guerra é travada entre a classe dominante e seus próprios cidadãos, e seu objetivo não é a vitória (…) e sim a manutenção intacta da própria estrutura da sociedade” - George Orwell
Uma característica comum às ideologias reacionárias é a ideia de que só o presente importa. O passado é falsificado: a história é alterada para criar uma época idealizada, na qual o mundo era “mais simples” e “melhor”. Os mitos bolsonaristas sobre a “revolução” de 1964 são exemplos dessa falsificação do passado. Já o futuro é apenas ignorado. Depois que a “guerra” política/econômica/cultural/espiritual for vencida, a sociedade entrará num estado ideal permanente e nada mais vai mudar. O Reich de mil anos prometido por Hitler se encaixa nessa perspectiva de “eterno presente”.
Impossível não reconhecer esta característica no movimento MAGA, ou “trumpismo”, como queiram. Como ideologia reacionária cada vez mais inclinada à extrema direita, o ideário de Donald Trump e seus seguidores distorce o passado (“faça a América grande DE NOVO” - em qual momento o país deixou de ser grande?) e faz pouco do futuro. Isso já havia ficado claro com a promulgação da tal Big Beautiful Bill no Congresso: uma demonstração do poder imperial que Trump tem - no presente - sobre o sistema político. As consequências econômicas, sociais e geopolíticas geradas pela lei serão sentidas no futuro. Mas quem se importa com o futuro? Quando ele chegar, quem ainda estiver por aqui que se vire.
Essa orientação está no centro da obsessão de negar a mudança climática e as evidências científicas. Neste ponto, vemos uma outra característica tipicamente reacionária: o ódio à educação, ao conhecimento e aos intelectuais de maneira geral. Isso também se reflete no combate sistemático a universidades e centros de pesquisa, uma ameaça concreta ao papel dos EUA como líder global em inovação e tecnologia. Aconteceu na Espanha da época da Inquisição, na Rússia stalinista e na Alemanha nazista. Vai acontecer nos Estados Unidos também.
Por aqui, tivemos um gostinho da tendência durante o governo Bolsonaro, que importou dos EUA o movimento antivax e fez o que pôde para desmantelar a educação pública, em especial as universidades federais. Quem não acredita em educação pública, não acredita no futuro.
É muito difícil nutrir algum otimismo em relação à política climática global, diante de um quadro desses. O isolacionismo e o negacionismo dos EUA são ameaças a todos os esforços que outros países vêm fazendo para mitigar as mudanças do clima. Quando o autoproclamado “líder do mundo livre” demonstra não estar nem aí para o tema, qual exemplo é dado? Os outros governos alinhados a Trump vão seguir o mesmo caminho? E os não alinhados? E a União Europeia, que se prontificou a importar US$ 750 bilhões em combustíveis (fósseis e nucleares) dos EUA - potencialmente comprometendo a transição energética do continente? E como vai reagir a China, que produz hoje mais de 70% do total de veículos elétricos do mundo… mas que não para de aumentar seus volumes de emissões?
Eu já escrevi que a mudança climática não tem ideologia, nem religião. Diferentemente dos homens que decidem como ela será enfrentada. É uma luta urgente de toda a humanidade no presente, para garantirmos o futuro. A alternativa oferecida por Trump é o consolo (?) de pensar que, no futuro, estaremos todos mortos.





trump, para mim, é como andressa urach: a pior notícia é sempre a próxima.
no atual estado das coisas, não tem mesmo como nutrir qualquer otimismo quando as pessoas que parecem dispostas a enfrentar o problema fazem pouco e lunáticos que negam o problema tem uma canetada todo-poderosa nas mãos.
é uma negação quase infantil da lógica negar as mudanças climáticas. tudo pra continuar vivendo num passado idealizado — que vai durar até quando? até a próxima enchente? isso sem falar na visível birra que existe nessas discussões: se ELES são contra, eu sou a favor.
Que maravilha de texto! Concordo com você. É dificil demais ser otimista diante deste quadro lamentável. Estou escrevendo minha dissertação de mestrado e minha pesquisa é o que faz eu ter esperança. Estou estudando o potencial educativo da comunicação dos coletivos. Ver o que eles fazem com as populações vulneráveis para que elas possam construir um pensamento crítico sobre o tema e questionar, lutar... mantém minha sanidade. O trabalho que você faz, que eu faço e que tantos outros fazem mostram que seremos resistência. Nem que seja para (re) existir.