(Nem sempre) vale o escrito
Na guerra ideológica travada na internet, termos como "liberdade de expressão" e "patriotismo" perderam seus significados originais
“Por muito tempo, os americanos foram multados, assediados e até mesmo acusados por autoridades estrangeiras por exercerem seus direitos de liberdade de expressão.
Estrangeiros que trabalham para minar os direitos dos americanos não devem ter o privilégio de viajar para o nosso país. Seja na América Latina, na Europa ou em qualquer outro lugar, os dias de tratamento passivo para aqueles que trabalham para minar os direitos dos americanos acabaram.”- Marco Rubio, Secretário de Estado dos EUA, no ̷X̷ Twitter, 28/05/2025.
Há uns 20 anos, trabalhei sob as ordens de um diretor de redação que proibia o uso da palavra “caos”. Sua justificativa, muito justa, aliás: “Qualquer desordem ou crise vira ‘caos’. Quando o caos chegar de verdade, ninguém vai reconhecer”.
Lembrei dessa história ao ler este divertido post publicado dia desses pelo site Núcleo. A materinha enumerava casos de palavras e expressões que, por ignorância, trollagem ou ironia, ganharam nas mídias sociais significados distintos daqueles que estão no dicionário. Sabe quando alguém escreve algo como “Estou LITERALMENTE morto de cansado”? Então.
Pois o negócio tem tomado rumos preocupantes, com reflexos que vão além de confusões semânticas online. Palavras, expressões e até conceitos complexos têm perdido seus sentidos originais, distorcidos ou até invertidos de acordo com a cara do freguês. Dissociados de seus significados primários, esses termos se transformam em armas ideológicas. Eu, que ganho a vida tentando arrumar palavras de modo mais ou menos coerente (e correto), me sinto alarmado diante dessa tendência.
Senão, vejamos:
“Liberdade de expressão”
Nos termos do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão é o direito de “sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
Já no artigo 29, o texto qualifica mais as condições para exercer esse direito: “1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei (…) com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.”
Desde que foi sequestrada pela extrema direita, a liberdade de expressão se tornou sinônimo de “o direito de, sem interferência, ter e transmitir qualquer tipo de opinião sem temer qualquer consequência legal, moral ou social, nem ter que lidar com opiniões divergentes”.
Limitações determinadas pela lei? Esquece. Para eles, a ~liberdade~ não deve ter limite algum. Respeito dos direitos e liberdades de outrem? Só daqueles que concordam comigo. Justas exigências da moral da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática? Para com isso, né, mermão? A extrema direita acha que incitar golpes de estado e disseminar discurso de ódio e mentiras deliberadas são apenas o exercício da liberdade de opinião e não interferem com a ordem e com a democracia.
Esse conceito distorcido de liberdade de expressão - liberdade de expressão para os (norte-)americanos, que fique bem claro - foi usado pelo governo dos EUA para promulgar restrições à entrada no país de pessoas que “trabalham para minar os direitos dos americanos”. O alvo não declarado da medida é o inimigo nº1 de Jair Bolsonaro e sua corja, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. O que Moraes fez para merecer a sanção? Fez cumprir, no Brasil, uma lei brasileira.
Vejam bem. O governo dos EUA tem o direito de impedir qualquer um de entrar no país, principalmente quando se trata de opositores de seus aliados. Só fica feio usar a defesa da ~liberdade da expressão~ como desculpa. Uma coisa é bloquear o ̷X̷ Twitter no Brasil, em resposta a um flagrante desrespeito a lei. Bloquear a ~liberdade de expressão~ é algo bem diferente.
“Deputado federal”
Deputado federal é aquele/a sujeito/a eleito/a a cada quatro anos para exercer duas atribuições principais: legislar (propor novas leis e sugerir a alteração ou revogação das já existentes) e fiscalizar os atos do presidente da República e as ações do Executivo. Não sou eu quem estou dizendo, é a própria Câmara dos Deputados.
Se perguntarmos a Eduardo Bolsonaro o que é um “deputado federal”, a resposta seria diferente. Seria algo tipo “agitador e ativista político sem compromisso com os eleitores, livre para desrespeitar suas obrigações parlamentares sem precisar dar satisfação à sociedade, bancado pelo contribuinte”.
Eleito deputado federal por São Paulo, o filho 03 de Jair está, desde março, licenciado da Câmara e vivendo nos Estados Unidos. E já sinalizou que não deve voltar tão cedo. Lá dos EUA, Eduardo Bolsonaro evidentemente não pode legislar, nem fiscalizar coisa alguma, como foi eleito para fazer. Sob licença, ele abriu mão de seu salário; no entanto, seu gabinete, que deveria estar também paralisado, segue torrando verbas públicas da ordem de seis dígitos por mês.
“Asilo” e “exílio”
O 03 justifica sua estadia nos EUA como “asilo político”. Outro termo que perdeu o significado. O pedido de asilo é um recurso válido para pessoas que, em seus países de origem, correm risco de serem punidas ilegalmente pela justiça por motivações políticas. Apesar do estardalhaço feito por Eduardo Bolsonaro sobre a “perseguição” do STF, não existem razões jurídicas para que ele peça asilo político aos EUA. (Tanto que, até agora, não há confirmação de que o deputado tenha efetivamente requerido o asilo.)
O filho de Jair também se definiu como “exilado político” nos EUA. A expressão não se aplica, pois ele foi por conta própria e pode retornar quando quiser ao Brasil. Algo que era vedado aos reais perseguidos políticos durante a ditadura militar de 1964-1985, aquela mesmo que a família Bolsonaro tanto louva.
“Patriota”
Antes de fazer as malas, Bananinha afirmou à imprensa que "abdicava temporariamente do mandato para seguir bem representando milhões de irmãos de pátria”. Como visto no verbete “Deputado federal”, uma escolha anula a outra: ao abdicar do mandato, ele também abre mão de representar os “irmãos de pátria”.
E que pátria é essa, afinal? De acordo com o Michaelis Online, “patriota”, substantivo e/ou adjetivo comum de dois gêneros, é primordialmente a “pessoa que ama a sua pátria e procura servi-la.” “Pátria”, “patriota” e “patriotismo” são palavras recorrentes no discurso bolsonarista. Também costumam ser, como dizia Samuel Johnson, o último refúgio dos canalhas, para quem esses termos são expressões vazias, descoladas do que já significaram um dia.
Lá dos EUA, o “patriota” Eduardo Bolsonaro não parece muito preocupado em servir à pátria. Pelo contrário: tem feito lobby junto a integrantes do Executivo e do Judiciário em Washington em prol de sanções a serem tomadas contra Alexandre de Moraes. Moraes, pessoa física, pode ser objeto de ódio dos bolsonaristas. Moraes, ministro do STF, representa uma das mais importantes instituições do estado brasileiro e a mais alta instância judiciária do país. Uma sanção norte-americana aplicável a Moraes por atos praticados no cumprimento de suas funções é uma afronta ao próprio Brasil. E o “patriota” 02 comemorou isso ontem publicamente (sem mencionar o ministro do STF, para evitar a fadiga).
“Parabéns, secretário de Estado Marco Rubio. A gente fica muito satisfeito (sic) em ver que a administração Trump está antecipando e adotando a política do No Censor on Our Shores Act, projeto de lei que tramita dentro do Congresso americano e que visa justamente retirar o visto daqueles violadores da primeira emenda americana, principalmente da liberdade de expressão. Deus abençoe a América, Deus abençoe o Brasil.” - Eduardo Bolsonaro, em vídeo postado no X̷ Twitter.
Recapitulando: um deputado federal brasileiro largou o serviço no Brasil e se mandou para os EUA, onde trabalha para obter uma interferência estrangeira na justiça brasileira. E demonstra mais preocupação com a Constituição americana do que com a brasileira. E chama isso de patriotismo. Chupa essa manga!
“Senso de ridículo”
Essa nem precisa explicar, basta clicar aqui.
Nao dá p não curtir!! Gostaria muito de mandar essa pequena " aula" para algumas "pessoas" que não entendem o óbvio. Mas...infelizmente alguns desses gados fazem parte da minha família...rs
Adorei o texto!!!