O jornalista de meia-idade e suas ilusões perdidas
Às vezes, você desiste de uma carreira; em outras, é a carreira que desiste de você
“Nós todos sabemos, tantos quantos somos, que os jornais irão mais longe que os reis na ingratidão, mais longe que o mais sujo comércio nas especulações e nos cálculos, e que devorarão nossas inteligências vendendo todas as manhãs sua aguardente cerebral; mas todos nós lá escreveremos, como essas pessoas que exploram uma mina de mercúrio sabendo que aí morrerão. (…) Quando ele tiver, como mil outros, gasto um belo talento em proveito dos acionistas, esses vendedores de veneno o deixarão morrer de fome, se tiver sede, e de sede, se tiver fome." - Honoré de Balzac, As Ilusões Perdidas
O post da semana passada foi sobre trabalho. O desta semana, também. Ou melhor, nem tanto sobre trabalho, e sim sobre carreira. O trabalho, se pensarmos bem, está sempre lá. É uma questão de baixar expectativas, ajustar pretensões, reconhecer a preponderância dos boletos sobre todas as outras prioridades… e meter a cara. Ao menos, enquanto houver saúde física e mental para tanto.
Carreira é um bicho completamente diferente. Envolve trabalho, óbvio, mas também envolve realização pessoal, sonhos, orgulho, projeto de vida, visão de mundo, identidade, o modo como os outros nos enxergam e como enxergamos a nós mesmos. Mudar de trabalho pode ser difícil, mas mudar de carreira é bem mais. Ser demitido do melhor emprego do mundo é muito menos traumático do que ser “demitido” da carreira que escolhemos.
Todo jornalista no século XXI vive preocupado com a própria carreira. Eu, como jornalista não-praticante (ou praticante sem fins lucrativos) de 51 anos trabalhando há uma década e meia sem carteira assinada, me preocupo muito, e há muito tempo. Em 2003, eu já externava essa preocupação. E de novo em 2017 (duas vezes, na verdade). E em 2018. Todas as frustrações e temores manifestados nesses textos foram resumidos em um longo desabafo que publiquei no Medium ao fim de 2021, esmagado por meu fracasso como webwriter. Na época, vejam vocês, estava realmente disposto a esquecer essa bobagem de escrever coisas na internet para ninguém ler. E, em menos de três anos, cá estava eu insistindo na bobagem de novo…
Porque carreira é isso, né? É algo feito de escolhas que acabam por definir a pessoa - só que nem sempre é a própria pessoa quem faz a escolha. Pensei nisso depois de três leituras feitas nas últimas duas semanas: um livro (e uma resenha-bônus relacionada), um post-desabafo e uma reportagem. Cada uma dessas leituras me fez refletir sobre o passado, o presente e o futuro da minha carreira como jornalista. Carreira essa que, de fato, me abandonou há mais de uma década. De direito, ainda é a única que tenho.
O livro: ‘When the Going Was Good’, Graydon Carter
Graydon Carter foi editor-chefe da revista Vanity Fair de 1992 a 2017. Assumiu o cargo meio desacreditado, em substituição à poderosérrima Tina Brown. Deu umas balançadas no começo. Mesmo assim, iniciou sua gestão com o pé na porta: Christopher Hitchens foi o primeiro freela que ele contratou. No quarto de século subsequente, Carter transformou a VF na melhor revista de variedades do mundo. A intimidade dos ricos & famosos era o foco. Ainda assim, havia espaço para reportagens e perfis incrivelmente bem escritos, a partir de pautas sempre inspiradas sobre… bem, sobre tudo.
Carter acabou de lançar (lá fora) um livro de memórias sobre sua trajetória profissional, com os anos na Vanity Fair em óbvio destaque: When the Going Was Good: An Editor’s Adventures During the Last Golden Age of Magazines. No volume (já iniciei mas não concluí), o editorzão faz parecer que foi tudo muito fácil: “Se você cuida bem de seus talentos, recebe um bom trabalho em troca”. Durante os 25 anos em que Carter comandou a VF, ele cuidou incrivelmente bem de seus talentos. Basta ler essa excelente resenha do livro escrita por Bryan Burrough, um dos mais estimados colaboradores da revista nos anos Carter. “Meu contrato previa três reportagens longas por ano, 10 mil palavras cada uma, em geral. No auge, cheguei a receber US$ 498.141 por ano, ou mais de US$ 166 mil por matéria”, lembra Burrough. “Sim, eu sabia que era (um valor) obsceno.”
"Naqueles primeiros dias e meses, quase tudo dava errado. A Vanity Fair era uma revista grande, um monstro que precisava ser alimentado constantemente. Eram algo entre 120 e 150 páginas editoriais para preencher a cada mês, então eu tinha de aprovar uma pauta relevante (de 3 mil a 15 mil palavras) a cada três dias, só para sobreviver (...) Mas (assumir a Vanity Fair) era como sair de um hostel para adolescentes e se hospedar em um hotel cinco estrelas.¨ - Graydon Carter, em When the Going Was Good. Tradução minha.
Trabalhei por muitos anos em revistas, como repórter e como editor. Na época, eu adorava ler a Vanity Fair. Roubava ideias de pautas, seções, diagramação; deliciava-me com as reportagens longas e muito bem escritas. Em 2009, cheguei a entrevistar o jornalista inglês Toby Young, que trabalhou na revista e escreveu um divertido (e tragicômico) livro sobre seus dias na publicação. Ler When the Going Was Good me transportou de volta àquele tempo, quando o jornalismo ainda era minha carreira (de fato). Na época, ainda era possível viver da profissão, mesmo que com dificuldades. Deixei as redações em 2010 e ainda continuei editando revistas até 2012. E testemunhei, de fora, sucessivos cataclismas na profissão: passaralhos, greves, fechamento de veículos, remuneração em queda livre.
Óbvio que sempre recebi, no máximo, uma mísera fração do pró-labore pago a Bryan Burrough e seus colegas. Mas tive meus momentos. Na década passada, como freelancer, passei alguns anos escrevendo duas ou três reportagens por trimestre para uma revista voltada ao mundo corporativo. Recebia R$ 2.500 por cada texto relativamente curto, um valor bom até hoje - imaginem em 2012. A revista não existe mais. O último jornal no qual trabalhei também não circula mais. A agência de branded content que me empregou entre 2010 e 2012 fechou. Às vezes, como escrevi lá em cima, não é você que desiste da carreira. É a carreira que desiste de você.
O desabafo: um post de █████████ ███████ no LinkedIn
Enquanto eu lia (no Kindle) o livro de Graydon Carter, um post no LinkedIn me chamou a atenção. Não vou dar o nome do postador, nem linkar o post, nem citar o texto na íntegra. Basta dizer que o sujeito é um jornalista conhecido, com experiência nos dois lados do balcão: reportagem, assessoria, mídias sociais, campanhas políticas. Pois bem, o cara chutou o balde e ousou expor sua humanidade na plataforma do profissionalismo tóxico. Confessou estar mal da cabeça, confrontado com a realidade da carreira em comunicação para profissionais de meia-idade sem estabilidade empregatícia.
O quadro pintado por █████████ ███████ no post-desabafo me é familiar por demais. A assustadora perspectiva de ter de trabalhar até a morte, por falta de reservas financeiras. As crises de consciência diante de decisões difíceis no cotidiano. As cobranças cada vez mais intensas. As fugas momentâneas à base de substâncias químicas, videogames, doomscrolling nas mídias sociais. E a falta de soluções para todos esses dilemas.
Ao chegar à meia-idade, o profissional de comunicação se vê em uma posição nada invejável. Se tem a sorte de ocupar uma vaga em uma empresa sólida e estável, precisa se reciclar constantemente e reaprender o ofício a cada dia, diante das supersônicas transformações sociais e tecnológicas. Se decidiu empreender, enfrenta um mercado saturado e concorridíssimo, além da desvalorização generalizada do serviço prestado. Se vive de freela em freela, não pode recusar trabalho, por mais aviltante e ridícula que seja a proposta. Todo dia vejo contemporâneos - profissionais que provaram, por anos, sua capacidade e talento - mendigando trabalho nas mídias sociais, para sobreviver. Vejo e me arrepio: poderia ser eu.
O desabafo de █████████ ███████ confirmou uma triste convicção pessoal. Burnout é coisa para jovens. Quando se tem 26 anos, é possível surtar, chutar o balde e ainda ter tempo de se reinventar. Aos 50 e poucos, quem sofre um burnout é largado na beira da estrada. O negócio é continuar rolando a pedra acima, enquanto a carcaça aguenta. Até quando?
A reportagem: ‘THE GEN X CAREER MELTDOWN’
“Quem iniciou uma carreira na mídia na década de 1990 - revistas, jornais, fotografia, design gráfico, publicidade, música, cinema, TV - hoje provavelmente está trabalhando em outra coisa”, vaticina de cara a reportagem “The Gen X career meltdown”, ou “o colapso das carreiras da Geração X”, publicada pelo The New York Times . Tem paywall, mas aqui dá pra ler na amizade. (Aliás, você já fez sua doação para manter o Wayback Machine funcionando? Eu já.)
Mais uma vez, a leitura calou fundo em minh’alma. Eu nasci em 1974 e iniciei carreira no jornalismo em 1996 (1994, contando os estágios). Há ressalvas geracionais, culturais e profissionais: a Geração X dos norte-americanos não é exatamente a dos brasileiros, o mercado de mídia & comunicação lá é muito maior etc. Não obstante, a linha-mestra da matéria se aplica ao Brasil também. Aqui, como nos EUA, pessoas entre 45 e 60 anos que trabalham nas profissões descritas acima vêm encontrando dificuldades cada vez maiores para se manter na carreira escolhida.
Como o texto aponta, as oportunidades encolheram e os avanços tecnológicos transformaram radicalmente o trabalho exercido. Redução de vagas e modelos de negócio tradicionais destruídos pela internet afetaram até as maiores empresas do ramo. Num momento em que, noutras profissões, o trabalhador está chegando ao auge da experiência e da remuneração, os quarentões e cinquentões da indústria criativa vivem situação oposta, marcada pela insegurança financeira e pela incerteza sobre o futuro. A solução para essa galera é admitir, como eu, que a carreira os abandonou. E procurar outra coisa para fazer.
“Além da perda de renda, há a carga emocional - sentimentos de luto e de perda experimentados por aqueles cujas carreiras sofreram um curto-circuito. (…) É duro abandonar uma vocação que dava satisfação e um senso de identidade. E não é fácil se reinventar depois dos 50 anos, especialmente em profissões que valorizam a juventude.” - Steven Kurutz, autor de 'The Gen X career meltdown'. Tradução minha.
Passei por tudo isso aí. Deixei o jornalismo TRUE em 2010 com uma sensação de alívio. O trabalho estava sacrificante demais, sem vislumbre de melhora. E, afinal de contas, dei sorte de achar outro ramo de comunicação no qual minhas habilidades & experiência ainda eram (são) valorizadas. Esse “sucesso” não foi suficiente para disfarçar uma amarga sensação de incompletude, que dura até hoje.
A carreira que eu escolhi ainda na pré-adolescência, para a qual me preparei e pela qual passei inúmeros perrengues, simplesmente me cuspiu. Contando a faculdade, foram 19 anos de luta, me tornando um profissional cada vez melhor, galgando com dificuldade cada degrau… e de repente, tudo acabou. O jornalista de verdade, o feito em e para salas de redação, aquele no qual me transformei a muito custo, já era um bicho em extinção em 2010. Em 2025, os sobreviventes escondem-se atrás de seus laptops, acossados por monstros como a IA, as mídias sociais e a contagem de pageviews.
Confesso que a reportagem do NYT me comoveu. Por mim e por todos os outros.
Parafraseando aquele velho ditado mordaz, tira-se a carreira do sujeito, mas não se tira o sujeito da carreira. Publico textos na internet desde 2000, já tentei parar e não consegui. E o que é isso, se não jornalismo? Há muito tempo, afirmo que o jornalismo não existe mais como profissão - só como ofício. Pode não dar dinheiro, mas segue necessário. Sempre vai haver gente se virando para apurar, escrever, editar e publicar textos jornalísticos. Se a coisa ficou financeiramente inviável para a “geração X”, virão outras, com outras expectativas e perspectivas.
Como diria Balzac, todo ano chegam novos Lucien de Rubempré a Paris.
Em dado momento, chorei lendo esse texto. Decidi ser jornalista aos 18, depois de negar por um tempo significativo que era disso que eu gostava. “Negava” porque sabia que seria difícil. Acabei cedendo à minha busca por prazer profissional, a busca por felicidade, pela completude que você citou. Passei em uma universidade federal aos 19. Estava há quase 1 ano trabalhando como telemarketing, só pra juntar algo pra faculdade, que seria em outro Estado. Chorei no banheiro do trabalho quando vi que passei no SISU. Pensei que tudo ia mudar, que eu tinha dado um passo significativo em direção a um futuro cheio do que eu amava. Bem, me formei durante a pandemia e um amigo programador me convenceu a tentar programar também, já que eu estava preocupada com o mercado de trabalho no jornalismo. Planejei receber minha renda com programação, enquanto faço o que amo (jornalismo) de graça. Só agora estou tendo mais tempo pro meu podcast (que veio de uma das minhas disciplinas preferidas na universidade: radiojornalismo). Ainda assim, mesmo que um episódio dure dias pra ficar pronto e várias horas só de edição, me falta tempo pra me entregar por completo, para fazer grandes pesquisas e um episódio com toda a qualidade que eu quero. Mesmo assim, estou contente com o resultado atual. Só que a vontade de voltar totalmente pro jornalismo, de viver disso, voltou. Tenho pensado muito sobre isso, mas para todo mundo que pergunto que se sustentam pela area, as informações são desanimadoras: são todos freelancers, PJ, 0 direitos, não podem recusar trabalho, como você disse. Eu sempre soube que seria difícil, mas não sabia que o mercado estava tão sombrio assim. Até hoje, 4 anos depois de formada, não me arrependo da faculdade. Foram os momentos mais felizes da minha vida. Mas ao que tudo indica, precisarei seguir programando e seguir dando o tempo que me resta ao que eu amo, e quem sabe um dia eu tenha a sorte de viver disso, de ter assinantes o suficiente ou de ser descoberta por alguém. O sonho continua. Acho que pra ser jornalista já temos uma tendência à grande imaginação. A incompletude continua, também.
É isso aí, companheiro! Depois de 8/9 anos caçando frilas, após 33 anos de "carreira" em grandes empresas de comunicação (comecei em 83, aos 21), sobrevivo mal com uma aposentadoria pífia (por idade) e foi uma vida toda jogada fora... Quando perguntam minha profissão, digo que estive jornalista. Abraço, boa sorte.