PRECISA ACABAR: o alfa-nerd
Eles estão em todos os espaços virtuais, tornando a vida na internet insuportável
Pessoal, esta semana não tem post inédito. Múltiplos incêndios a apagar na firma, não deu nem pra pensar num tema. Republico então um texto de novembro de 2023 “praticamente” inédito (i.e., quase ninguém leu, como acontece com quase tudo que escrevo), postado originalmente no Telhado de Vidro, meu comatoso blog no Medium. Além de ser seminovo, o texto ainda é, infelizmente, muito atual em fevereiro de 2025.
Mais uma coisa: o lembrou ontem dos 20 anos de morte de Hunter S. Thompson, o padroeiro do jornalismo gonzo. Sabiam que, em 2021, eu reescrevi o magnum opus de Thompson, Medo & Delírio em Las Vegas, reambientando a história no Brasil bolsonarista do século XXI? Quem quiser conferir o resultado pode ir lá na Amazon comprar o e-book, tá baratinho: Fear & Loathing in Londrina.
DISCLAIMER: O gênero masculino será usado indiscriminadamente neste texto, refletindo a elevada porcentagem de homens nas fileiras alfa-nerd. Há mulheres na turma também, mas são minoria.
Seguidores de divas pop batendo boca. Youtubers dando palpites messiânicos sobre política, investimentos, carreira, masculinidade. Adolescentes escondidos atrás de avatares de anime, pregando o fim do estado. Fãs de bonecos, de filmes de bonecos, de videogames de bonecos, de revistinhas de bonecos, de séries de bonecos. Adoradores da Tesla e da Space X. Se você mantém presença nas mídias sociais — e quem não mantém? — você esbarra todo dia com um, mais de um ou todos esses tipinhos desagradáveis, e se vê arrastado, contra a vontade, para as ~polêmicas~ criadas por eles.
Independentemente do nicho de atuação, todas as pestes descritas acima pertencem a uma única categoria de persona virtual: o alfa-nerd. Dos trolls que fazem das mídias sociais esse inferno que conhecemos, é um dos mais irritantes e nocivos. Ao combinar a chatice monotemática à arrogância e ao exibicionismo crônico, o alfa-nerd se torna insuportável para todo mundo… exceto para seus milhares, às vezes milhões de seguidores.
Como se sabe, o nerd é uma pessoa obstinada e obcecada por algum tópico em particular a ponto dessa obsessão se tornar o ponto central de sua imagem social. Entretanto, o nerd ordinário tem como característica a inabilidade de se relacionar com outras pessoas. O alfa-nerd não enfrenta esse problema. Sua extroversão e a convicção de estar sempre certo o tornam um protagonista natural nas plataformas online. O tom de autoridade no discurso vem do excesso de tempo dedicado a estudar o objeto de sua paixão.
Enquanto o nerd 1.0 se contentava em compartilhar sua obstinação apenas com seu círculo de iniciados, o alfa-nerd — empoderado pelas mídias sociais — quer enfiar seu evangelho goela abaixo de todo mundo. O nerd costumava ser discreto a respeito de suas esquisitices, para melhorar as chances de interagir com os “normais”. O alfa-nerd as exibe orgulhosamente, como uma bandeira. Errados somos nós, que não acompanhamos sua paixão.
O alfa-nerdismo atingiu seu ápice em 2022, quando Elon Musk adquiriu o controle do Twitter, hoje X (sic). Musk é o santo padroeiro da categoria. Nerd de feitio clássico (programador de computador aos 10 anos, sofreu bullying na escola, fã de sci-fi, bacharel em física), reinventou-se como homem-mais-rico-do-mundo, megaempreendedor, palestrante e palpiteiro profissional em uma variedade de tópicos controversos.
Diferentemente dos nerds tradicionais, Musk sempre se caracterizou por elevados níveis de autoconfiança e impulsividade — expostas em uma torrente incessante de hot takes (quase sempre errados) sobre todo tipo de assunto, dos seriíssimos aos ultrabanais. Ao comprar a plataforma do passarinho azul, o empresário garantiu o maior megafone do mundo para divulgar suas trolladas. Todo alfa-nerd deseja ter a marra de Musk e, acima de tudo, seu alcance nas mídias sociais (mais de 150 milhões de seguidores no Twitter).
Um breve histórico da nerdice
Na era pré-cambriana (a década de 1980) a coisa era mais fácil de entender. Havia o playboy e havia o nerd.
O playboy era o cara que se definia por sua interação social com o mundo exterior. O que importava (importa) ao playboy era como as pessoas o viam; como ele poderia ganhar alguma vantagem a partir de sua rede de relacionamentos; como se divertir às custas dos outros. Etc.
O nerd, em contraposição, era voltado para seu próprio interior. Introspectivo, ele se definia por suas paixões e obsessões. O fracasso social do nerd era um círculo vicioso: tímido por natureza, ele dedicava seu tempo a si mesmo, o que atrofiava seu traquejo com o resto da humanidade… e retroalimentava a própria timidez. (Falo por experiência própria.)
O yin-yang entre playboys e nerds, claro, precede os anos 1980. A história da humanidade é feita de atritos entre os fazedores e os pensadores, entre os impetuosos e os sensíveis, entre os atletas e os CDFs. Todo Dean Martin precisa de um Jerry Lewis para encher seu saco; todo Lewis precisa de um Martin para se considerar (quietamente) superior e evoluído.
Na década de 1990, o cenário começou a mudar de figura. Em sua edição número 3 (janeiro de 1994), a revista General dedicou uma reportagem de capa a um novo perfil de nerd. A redefinição do termo tirava o estigma de segregação social e argumentava: o estereótipo do loser quatro-olhos era coisa do passado. Até Ayrton Senna (!) era citado como exemplo de nerd vitorioso e popular.
Já no começo dos anos 2000, o saudoso portal Fraude.Org mantinha uma coluna dedicada ao mundo nerd, na qual uma teoria instigante era sustentada — qualquer um poderia ser nerd, mesmo que não parecesse ser (ou que negasse a condição). Quando a pessoa deixava o interesse por um assunto específico tornar-se o principal traço de sua personalidade, ela se tornava um nerd. Podia existir o nerd de carros tunados, de heavy metal, de mixologia, de telenovelas. Qual a diferença entre um sujeito fluente em klingon e outro capaz de citar de cor os 22 jogadores do ASA de Arapiraca no Campeonato Alagoano de 1973?
Pois bem. No começo dos anos 2000, a internet ainda era, bem, coisa de nerd. Mídia social era lista de e-mails. Em 2023, todo mundo tem acesso à web, e as portas de entrada são as megaplataformas online, nas quais todo mundo quer falar ao mesmo tempo. E os alfa-nerds querem falar mais alto que todo mundo.
Do ICQ ao TikTok, os alfa-nerds foram progressivamente favorecidos pelas mecânicas e algoritmos das plataformas. Elas recompensam quem grita mais alto e quem gosta de bater boca. A introspecção roots foi suprimida; a vertente dominante hoje não se importa em incomodar os outros ou em “parecer estranha” para os normais. Eles aprenderam que, na mídia social, gerar incômodo ou estranheza é o que vale cliques. Nesse sentido, tornaram-se indistinguíveis de sua antítese natural, os playboys.
As facções mais irritantes de alfa-nerds
Os alfa-nerds podem parecer irreconhecíveis para os acostumados ao arquétipo padrão nerd. Mas, não importa o quão populares e/ou desinibidos sejam, não se enganem: eles ainda são nerds.
O superstan
O tipo mais ubíquo de alfa-nerd. Há superstans de toda sorte de figuras da cultura pop, mas não para por aí. Inicialmente, a coisa abrangia apenas alvos previsíveis (cantoras, Marvel, DC, Star Wars, videogames etc.). Depois se alastrou para campos considerados “adultos” (livros, filmes) e/ou “másculos” (torcidas organizadas). E passou a incluir, pasmem, fãs-clubes de empresas, políticos, marcas em geral, influencers. Nem conflitos armados escapam: nas guerras ainda em curso, Ucrânia, Rússia, Israel e Hamas contam com seus próprios séquitos de superstans. Enfim, qualquer coisa com presença online que seja capaz de atrair a atenção. O tópico pode variar; o que não varia é o modus operandi.
Todo superstan é movido por uma paixão irracional. No entanto, nas mídias sociais, ele devota incontáveis horas tentando construir argumentos “racionais” para justificar sua paixão. Não basta falar o tempo todo da coisa amada, é preciso também convencer o resto da internet de que o amor pela coisa amada é a única atitude justa e correta. Toda sorte de “evidência” é usada pelos superstans para “provar” que eles estão do lado certo e os “inimigos” estão errados. Nesse sentido, não há diferença entre o tosco torcedor de futebol que saca estatísticas de scout para provar que seu time é o “melhor” e os melífluos swfities/anitters/cactos/sonsers que soltam fogos a cada “recorde” batido no Spotify por suas amadas.
O coach (de qualquer porra)
Esse alfa-nerd venceu na vida e quer provar que pode transformar qualquer um em um vencedor. O detalhe é que ele, previamente, fracassou em tudo o que tentou… e, inexplicavelmente, tornou-se especialista em sucesso. O coach baseia seus ensinamentos num arcabouço teórico (desdobrado em cursos, livros, vídeos e palestras), mas a real mercadoria que ele vende é a autoconfiança. Basta acreditar, superar seus limites, acordar cedo e encarar a escalada do Pico da Neblina ou uma maratonazinha. Morreu? Faltou resiliência.
O redpill palestrinha
O redpill básico já é chato pacaralho sozinho, quieto no seu canto. Ao mesclar suas paranoias sexistas com a eloquência vazia do coach, vira essa bosta aí. Os caras transformam suas inseguranças e inadequações em “guias de masculinidade”, mas não conseguem disfarçar o tremendo esforço que fazem pra gostar de mulher. Como derivado do coach, este alfa-nerd também busca descolar um troco falando bobagens na internet e em encontros presenciais. Às vezes dá merda.
O ancapinho juvenil
Ele sempre se esconde atrás de um avatar de anime. Gosta de se engajar em discussões sobre o tamanho do estado, privatizações, regulação do mercado financeiro, taxas e aduanas. E seu grito de guerra é sempre algo do tipo “IMPOSTO É ROUBO!”. O problema é que ele geralmente só tem 13 anos e nem sabe do que está falando. Um subgrupo especialmente irritante são os ancaps da TI — sim, o carinha do suporte, que viu episódios de Mr. Robot além da conta e acha que vai “derrubar o sistema por dentro” com arengas anarcocapitalistas nas mídias sociais.
O daytrader
Outro subtipo de coach, o daytrader se apresenta em vários sabores. Tem o formato padrão, aquele cara que passa o dia tuitando sobre cotações e tendências, mas não sobrevive dos investimentos — e sim de vender cursos etc. sobre investimentos. Tem o primo-rico, aquele que insiste ser possível atingir a independência financeira poupando R$ 0,10 por dia. Tem o criptobro, que jura ter desbloqueado o segredo de como ficar bilionário com moedas virtuais. E o empreendedor serial, que diz estar sempre explorando oportunidades, acordando de madrugada, dando 120% de si (mas sempre tem tempo pra ficar de bobeira nas redes sociais). Em termos de mundo offline, esse é o tipo mais perigoso de alfa-nerd. Muitas de suas ideias para enriquecimento rápido são indistinguíveis de esquemas criminosos.
O youtuber polemista
“Polemista” sempre foi um termo controverso, mas ao menos antigamente era aplicado a pessoas com um mínimo de inteligência e cultura. A revolução da comunicação digital tornou o conceito completamente inútil, já que hoje qualquer ser de cognição limítrofe atrai centenas de milhares de seguidores com suas ~polêmicas~. Até aí tudo bem, as pessoas têm o direito de jogar seu tempo fora como bem entenderem. Problema é que esses caras, não raro, furam suas próprias bolhas de seguidores e se tornam pauta no mundo real, influenciando no debate político e repercutindo na mídia tradicional. Chegam mesmo a vencer eleições. Assim não dá.
Faça a sua parte!
Irredutíveis, extrovertidos e com MUITO tempo livre, os alfa-nerds são máquinas humanas de spam, a areia nas engrenagens das mídias sociais, o ruído que torna a comunicação na internet impossível. Ou nos livramos deles, ou a permanência nas plataformas se tornará inviável.
Lembre-se sempre de que o alfa-nerd é um troll. E com troll não tem conversa. Essas criaturas que rastejam na cloaca das mídias sociais só merecem o silêncio. Não se deixe envolver em suas discussões sem pé nem cabeça, não replique, não retuite, não dê atenção. Deixe-os se matando sozinhos, em suas discussões infindas sobre qual cantora chegou ao primeiro bilhão de streams, se devemos ter o direito de defender o nazismo, se filme da Marvel é arte ou não. O mute é seu amigo, o block é o companheiro de todas as horas.