Precisamos do bolsonarismo normalizado... nas páginas policiais
A grande imprensa deveria tirar Bolsonaro da editoria de política e trata-lo como ele merece. Em vez disso, reforça a narrativa do "mito" antissistema e alimenta a fé dos radicais
Às 7h15 do dia 27 de novembro de 2024, o site Poder 360 publicou uma matéria divulgando os resultados de uma projeção para a eleição presidencial de 2026, conduzida pelo instituto Paraná Pesquisas. O texto, intitulado “Bolsonaro teria 37,6% contra 33,6% de Lula se eleição fosse hoje”, destaca que “em eventual 2º turno, (…) Jair Bolsonaro teria 43,7% contra 41,9% de Luiz Inácio Lula da Silva”, apesar de fazer, já no subtítulo, a necessária ressalva sobre a inelegibilidade do capitão reformado do Exército.
A menção à data e horário exatos da publicação ajuda a contextualizar o bizarro timing da notícia. No dia anterior, todos os veículos do país (inclusive o próprio Poder 360) repercutiram o relatório da Polícia Federal sobre o inquérito acerca da conspiração liderada por Bolsonaro e um grupo de militares graduados para melar as eleições de 2022 e manter o presidente derrotado no Planalto. Se faltar disposição para encarar as 884 páginas do relatório (linkadas na matéria do Poder 360), pode consultar esta conveniente linha do tempo da conspiração, sintetizando as manobras apuradas pela PF.
Quer dizer, ninguém precisa consultar coisa alguma, nem inquérito, nem linha do tempo. Não há quem desconheça, há décadas, as intenções golpistas de Bolsonaro. Mesmo porque ele nunca as ocultou. O golpe frustrado de 2022 era uma bola cantadíssima, depois de anos de louvações à ditadura de 1964-1985, arengas incoerentes sobre as “quatro linhas da Constituição” (WTF!) e um trabalho intenso para desacreditar as urnas eletrônicas, a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal.
Ficam então as perguntas: por que c$#%&* estamos lendo, às 7h15 do dia 27 de novembro de 2024, uma notícia sobre as perspectivas eleitorais de Jair Bolsonaro em 2026?! Por que a imprensa ainda insiste em tratar um criminoso confesso (e inelegível) como ator legítimo do cenário político?
A normalização, por parte da imprensa corporativa, da extrema direita em geral e da figura de Bolsonaro em particular já rendeu até estudos acadêmicos. Ao manter o ex-presidente em constante evidência no cenário, os principais veículos jornalísticos estariam contribuindo para amenizar (aos olhos do público) seu radicalismo e minimizar suas constantes ameaças às instituições democráticas (incluindo, paradoxalmente, a própria imprensa). Isso desconsiderando veículos menores que abdicaram de qualquer sombra de imparcialidade e apoiam abertamente Bolsonaro. A ideia seria validar o capitão reformado como alternativa aceitável (e com apoio popular) à esquerda, a despeito de seus crimes confessos e inconfessos.
Essa cobertura “normalizante” se daria por vieses variados. O Globo instalou em seu portal web um par de colunistas de política que cumprem, galhardamente, o papel de assessoras de imprensa de Bolsonaro e de seu entorno - com um fluxo incessante de “informações exclusivas” fornecidas pelos próprios, publicadas acriticamente, sem qualquer ponderação. O Estadão se especializou em publicar editoriais com títulos caça-cliques, nos quais um “isentismo” ostensivo disfarça mal o antiesquerdismo crônico do vetusto jornal.
O caso da Folha de S.Paulo é mais complexo. Desde 2018, o grupo comandado pela bilionária família Frias tem dado um espaço cada vez maior às novas correntes direitistas em suas publicações. A intenção evidente é sinalizar ao establishment conservador (do qual o jornal é porta-voz) que, apesar dos pesares que pairam sobre a figura de seu líder, conviver em paz com o bolsonarismo é um caminho viável para a direita tradicional.
A cobertura do mundo das igrejas evangélicas e do cenário da música sertaneja, dois nichos importantes na base bolsonarista, hoje é destaque. Assim como as colunas de opinião engajadas na guerra cultural movida pela direita, comentaristas isentões e questionamentos frequentes à atuação do STF. Essa guinada alla destra atingiu um ponto de fervura com a reeleição de Donald Trump nos EUA. O jornal deu amplo espaço para uma entrevista com Bolsonaro - praticamente um triunfante pré-lançamento de campanha, com direito a especulação sobre o vice da chapa - e publicou um artigo de “opinião” assinado pelo ex-presidente, com o provocativo título de “Aceitem a democracia”.
(Tudo bem, Folha. A gente acredita que vocês acreditaram que o Jair seria capaz de escrever algo mais complexo que uma lista de compras.)
A verdadeira questão (cuestão): nada disso serve para normalizar Bolsonaro. Pelo contrário. O caudaloso noticiário sobre o golpista apenas reforça seu excepcionalismo, sua suposta postura antissistema e/ou os aspectos mais bizarros e tragicômicos de seu comportamento. Mesmo as manchetes destacando os “ataques à democracia” ganham um aspecto abstrato, levando para o mundo das ideias a realidade brutal de um golpe criminoso.
Em vez de normaliza-lo, tudo isso transforma-o no tal “mito” que seus partidários sempre citam. Cada menção a seu comportamento subversivo e fora dos padrões convencionais só alimenta o fascínio dos correligionários, e a crença na ideia de uma “perseguição” que deveria ser apenas policial, e não política.
Normalizar Bolsonaro de verdade seria mover a cobertura sobre ele e seus comparsas para as páginas de crime. Vejam o exemplo abaixo, retirado de uma matéria publicada pelo UOL (pertencente ao Grupo Folha).
Dá para imaginar um tratamento semelhante dispensado a, por exemplo, um traficante de drogas ou a um assassino? “Operação da PM no Complexo da Maré abala o Comando Vermelho após otimismo com vitória sobre a milícia” - que tal essa manchete?
Outro exemplo rápido, extraído do Estadão, se vê na imagem abaixo.
O que o articulista está sugerindo? Um deixa-disso generalizado, para evitar uma suposta “convulsão social”? Que os seguidores de Bolsonaro têm o poder de gerar uma guerra civil, e por isso seu líder é inimputável?
Mais uma, aí embaixo. Pense agora na seguinte manchete: “Fernandinho Beira-Mar admite fugir para o Paraguai para evitar prisão por tráfico e assassinato”. Seria aceitável?
O antiesquerdismo atávico dos grandes grupos jornalísticos nos levou a esta situação. Para Globo, Folha, Estadão & congêneres menos cotados, qualquer alternativa viável à direita é preferível à continuidade do PT no poder. Normal, pois esses grupos são controlados por algumas das famílias mais ricas do país, que não têm motivo algum para simpatizar com a esquerda.
Aí junta a fome com a vontade de comer. Tudo que se publica sobre Bolsonaro rende cliques e compartilhamentos. Convenientemente, ele também é hoje a única esperança da direita para um (cada vez mais provável) embate com Lula em 2026. O resultado é uma cobertura morde-e-assopra, que se mostra superficialmente indignada com o extremismo bolsonarista… e não consegue disfarçar seu fascínio pelo mesmo extremismo.
Tirar Bolsonaro das manchetes é impossível. Ele e seus crimes sempre serão notícia. Mas precisam ser tratados como tal: crimes cometidos por um criminoso. Se o caso é de crime, o lugar certo para se ouvir “o outro lado” é no tribunal, não na imprensa.
Projeções de percentuais de voto publicados em hora imprópria, jornalismo (sic) declaratório, editoriais relativizando seus desmandos, notinhas “exclusivas” que não passam de assessoria de imprensa, ponderações “isentas” sobre a legitimidade das investigações, pensatas alucinadas imaginando convulsões, microfones abertos para o “outro lado” desqualificar a PF e o STF sem qualquer contextualização: nada disso é normalização. É a “excepcionalização” de Bolsonaro, na qual a grande mídia insiste. Mesmo tendo documentado tudo que se passou no país desde a eleição presidencial de 2018.
POST-BÔNUS: um ano e meio antes do ataque terrorista de 08/01/2023, eu publiquei no Medium um texto imaginando o que aconteceria se Bolsonaro concretizasse suas ameaças golpistas - a despeito da improbabilidade de sucesso da intentona. Clique aqui para ler no Substack.
Marco Antônio, você menciona os grandes veículos da imprensa contaminados de conservadorismo, para ser educado. O que sugere como fonte confiável e crítica de informação política, nos dias de hoje?