Sustentabilidade não apaga incêndio... mas pode evitar o próximo
Relatórios corporativos dão trabalho para quem faz e para quem lê. Usados de forma correta, são uma ferramenta preciosa para o desenvolvimento sustentável

Eu tenho um dayjob, sabiam? Pode ser surpreendente para muitos de vocês, mas a glamourosa rotina de publicar textões no Substack não paga minhas contas. Por falar nisso…
Eu trabalho com sustentabilidade. Ou melhor, trabalho ajudando outras empresas a melhorarem suas estratégias e práticas de sustentabilidade, equilibrando resultados financeiros e a necessidade de criar impacto socioambiental positivo. Esse trabalho se desenvolve em várias frentes, passando por consultorias, análises de dados, diagnósticos, aplicação de indicadores etc.
Na parte que me cabe nesse latifúndio, eu uso meu limitado domínio da língua portuguesa na produção de relatórios de sustentabilidade corporativa para outras organizações. São documentos complexos, extensos e que precisam seguir uma série de diretrizes e padrões. As diretrizes centrais e mais usadas são as normas da Global Reporting Initiative (GRI), a ONG que oferece a mais difundida metodologia para reporte de desempenho corporativo e de sustentabilidade, incluindo aspectos financeiros, sociais e ambientais.
A glória da GRI é sua universalidade: qualquer empresa, de qualquer porte ou área de atuação, pode usar suas normas para medir seu desempenho e ter uma medida de sua maturidade em relação a outras empresas, concorrentes ou não. A companhia recebe um questionário com dezenas (às vezes centenas) de indicadores a serem respondidos, e que explicam, em texto e números, como a empresa faz sua administração financeira, sua política de recursos humanos, suas iniciativas ambientais, seus projetos de voluntariado, sua gestão de riscos, sua conformidade legal etc. etc. etc.
Se parece complicado para os leigos, não se frustrem. É complicado mesmo. É complicado até para mim, que tenho mais de uma década de trabalho na área. É realmente difícil dar um sentido concreto ao trabalho. OK, produzimos os relatórios onde as empresas contam o que estão fazendo para melhorar o mundo (ou piora-lo menos). Mas e na vida real? O que significa aquele monte de palavras e números e códigos? Como aplicar a teoria dos indicadores GRI para entender, na prática, o que é sustentabilidade?
Pois às vezes uma tragédia oferece uma oportunidade. Vocês devem ter visto a miséria que rolou aqui no Rio na quarta-feira: uma enorme fábrica de fantasias de carnaval pegou fogo. Felizmente ninguém morreu, mas mais de 10 pessoas ficaram gravemente feridas e o prejuízo material foi total.
Nos dias subsequentes, as investigações mostraram uma série de irregularidades que potencializaram as consequências do fogaréu. O prédio não tinha autorização do Corpo de Bombeiros para funcionar. Um dos fulanos registrados como proprietário do lugar diz que tem nada a ver com a fábrica; o outro incorre em pelo menos dois conflitos de interesse, ao estar ligado a uma escola de samba e à liga responsável pelos desfiles. Os trabalhadores da fábrica eram submetidos a uma rotina insalubre e exaustiva.
É muito improvável que a Maximus Ramo Confecções de Vestuário e a Bravo Zulu Confecções e Representações Ltda, as empresas que ocupavam a fábrica incendiada, cogitem, um dia, lançar relatórios de sustentabilidade. Mas, se elas quisessem, teriam a chance não só de dar suas versões para o incidente; também poderiam sublinhar que medidas serão tomadas para evitar tragédias futuras, tudo isso usando os indicadores GRI.
Por exemplo: um relatório sob as normas GRI tem que trazer, obrigatoriamente, detalhes sobre a organização (indicador GRI 2-1), incluindo nome jurídico e estrutura societária. Só aí, já resolveríamos a pendenga sobre a identidade real do dono da fábrica. O indicador seguinte, GRI 2-2, inclui a especificação de todas as entidades incluídas no relato e a responsabilidade que a empresa reportante tem sobre essas entidades. O indicador GRI 2-3 exige a publicação de um canal de contato (geralmente um e-mail) com um representante da empresa. O GRI 2-4 pede para listar as reformulações relevantes acontecidas no período de relato. A empresa mudou de dono? De nome? Entraram ou saíram sócios? A natureza do negócio em si foi alterada?
Os indicadores 2-9 a 2-18 tratam de diversos aspectos de governança. Ou seja, quem realmente manda na empresa (e deve ser responsabilizado num caso como o ocorrido em Ramos). Também exige que a empresa explique como aborda conflitos de interesses, como os protagonizados por um dos sócios. Os indicadores 2-25 e 2-26 abordam, respectivamente, os processos implantados para mitigação de impactos negativos (tipo… um incêndio) e os mecanismos disponíveis para que os públicos de interesse da empresa (funcionários, clientes, autoridades etc.) busquem aconselhamento e reportem práticas irregulares.
O GRI 2-27 seria, digamos, um desafio para a fábrica queimada: conformidade com leis e regulamentos. A administração precisaria explicar por que um de seus sócios nega ter envolvimento com o negócio, e por que a empresa funcionava sem autorização dos Bombeiros. Além de relatar quaisquer multas ou sanções que tivessem recebido por irregularidades.
Quer saber mais sobre como a empresa trata (tratava) os empregados? A GRI te responde. O indicador GRI 2-7 demanda o relato de todos os funcionários próprios e terceirizados, segmentados por gênero, faixa etária, local de trabalho, jornada integral ou parcial. Se o patrão obrigava os funcionários a dormir na fábrica, isso precisaria constar no relatório.
A série 400 da norma traz vários indicadores referentes à saúde e à segurança dos empregados, como identificação de periculosidade, avaliação de riscos e investigação de incidentes (GRI 403-2), serviços de saúde de trabalho (GRI 403-3) e capacitação de trabalhadores em saúde e segurança do trabalho (GRI 403-5). Na resposta ao GRI 403-10 (Acidentes de trabalho), a empresa deve descrever com detalhes causas e consequências, número de vítimas, ações implementadas para apoiar as vítimas e suas famílias e as medidas de segurança a serem tomadas para evitar novos acidentes.
Se a Maximus Ramo Confecções de Vestuário e a Bravo Zulu Confecções e Representações Ltda lançassem relatórios no padrão GRI, todas essas respostas acima estariam respondidas, tornando mais fácil o trabalho de entender as causas do acidente, as medidas tomadas para proteger a vida dos trabalhadores e quem deve ser responsabilizado pelo ocorrido. Pode não parecer, mas tudo isso é sustentabilidade também.
As normas GRI completas compõem um PDF mais grosso que o Player’s Handbook do RPG Dungeons & Dragons… e trazem regras ainda mais complexas. Calma: ninguém precisa ler o calhamaço todo para entender o princípio da coisa e sua relação com a sustentabilidade. Uma empresa que trata seu negócio com transparência tem a chance de, ao lançar um relatório de sustentabilidade, mostrar ao mundo como lida com desastres como o ocorrido na última quarta-feira. Os indicadores GRI, quando propriamente respondidos, oferecem um panorama claro da integração entre as diversas áreas de uma empresa e como cada uma contribui para mitigar riscos e tratar de impactos negativos causados à sociedade e ao meio ambiente.
Não é um processo fácil, nem para quem responde (as empresas) os indicadores, nem para quem os compila (eu). Mas é uma ferramenta que nos ajuda a construir uma relação mais sustentável com o mundo corporativo. Penso nisso e fico um pouco menos desanimado com o dayjob.