Um oligarca em cima do muro
Jeff Bezos impediu o 'Washington Times' de apoiar a candidatura de Kamala Harris. Na prática, isso equivale a um endosso envergonhado (ou cínico) a Donald Trump
A tradição da imprensa dos EUA de anunciar apoio público a candidatos à presidência é quase tão antiga quanto as próprias eleições presidenciais. Em 1860 (a 16ª disputa pela Casa Branca), o The New York Times inaugurava o conceito do press endorsement ao apontar, em um editorial, o Republicano Abraham Lincoln como o melhor postulante ao cargo, ressaltando sua “disposição conciliatória” e sua “tolerância”.
Mantendo o costume secular, o mais respeitado jornal dos EUA publicou em setembro último sua carta de apoio a Kamala Harris, rotulando a candidata Democrata como “a única escolha patriótica”. E tudo bem. O endosso público (que não significa engajamento na campanha endossada) é coerente com a visão norte-americana do papel da imprensa dentro de uma democracia liberal (“liberal” no sentido político). Os veículos assumem a responsabilidade de apontar qual candidato serviria melhor ao povo, de acordo com sua linha editorial e seus princípios jornalísticos.
A ideia pode parecer meio bizarra para os brasileiros. Desde a modernização da imprensa local, caiu em desuso o ato de apoiar oficialmente políticos em campanha. Extraoficialmente, decerto, a história é outra.
Voltando aos EUA: junto ao Times, dezenas de veículos nacionais e locais também publicaram seus editoriais de indicação (há uma lista sucinta aqui). Na relação, uma ausência conspícua: o The Washington Post, principal diário da capital e competidor n°1 do NYT entre os impressos de circulação nacional. A última vez que o WP deixou de publicar um editorial de apoio tinha sido em 1988 (George Bush pai vs. Michael Dukakis).
A decisão de não endossar candidato algum veio diretamente do dono do WP, Jeff Bezos, que, não sei se vocês sabem, também é proprietário de uma modesta plataforma de comércio on-line. A equipe de opinião do jornal tinha preparado um editorial indicando Kamala. Na semana passada, Bezos ordenou não apenas que o texto fosse arquivado; também instruiu o diretor de redação Will Lewis a anunciar que o Post não mais faria anúncios públicos de apoio dali em diante. Os bastidores da manobra estão narrados neste relato do New York Times.
Acontece que a eleição presidencial de 2024 não é qualquer eleição presidencial. Os EUA estão diante de uma encruzilhada existencial, talvez a mais crucial desde a Guerra Civil (1861-1865). Donald Trump não faz segredo de suas intenções de desmantelar as instituições democráticas do país e de aprofundar suas veleidades ditatoriais. É um daqueles momentos em que não há como ficar em cima do muro. Apoiar nenhum dos dois equivale, na prática, a um voto silencioso - talvez envergonhado, provavelmente apenas cínico - em Trump.
E trata-se de uma questão existencial ainda mais literal para a própria imprensa. O ex-presidente derrotado em 2020 prometeu mandar prender repórteres e editores e fechar emissoras de TV que o desagradem, se reeleito. Por isso mesmo, dos mais de 150 veículos contabilizados pela Wikipedia na lista citada acima, apenas 15 declararam apoio aberto a Trump.
A amarelada histórica do Washington Post teve repercussões imediatas e pesadas. Dezenove colunistas do jornal publicaram uma carta conjunta, rotulando a decisão de Bezos como “um erro terrível”. Outros membros graduados da redação pediram demissão. Figuras importantes na história do jornal, como Carl Bernstein e Bob Woodward (é, os caras de Watergate), se declararam “surpresos e desapontados”. E em menos de uma semana, o veículo perdeu mais de 200 mil assinantes. Confrontado com essas consequências, o chefão da Amazon publicou em 28 de outubro um editorial explicando suas razões. A emenda, claro, ficou pior que o soneto.
Em resumo, Bezos afirmou no texto que o povo americano não acredita mais na imprensa, e que deixar de endossar uma candidatura presidencial em 2024 é um passo para aumentar a credibilidade do jornalismo junto à sociedade. Ele se identifica como jornalista (e não como o segundo homem mais rico e controlador de um império multitentacular e com alcance global). E garante: “Nunca impus minha vontade sobre qualquer pessoa do Washington Post para favorecer meus próprios interesses”. (Esta declaração certamente foi incluída para rebater acusações de conflito de interesses, uma vez que funcionários de uma das empresas de Bezos se encontraram com Trump algumas horas antes do fatídico anúncio do WP.)
Há muito que ler nas linhas da carta de Bezos. E mais ainda nas entrelinhas. Apesar de retratar-se como “jornalista”, o careca da Amazon é na verdade um oligarca plataformizado, como aponta corretamente o verbete com sua biografia na Wikipedia. (Lembra o caso brasileiro de Roberto Marinho, um dos empresários mais ricos da história do Brasil, que preferia ser chamado de “jornalista”.) Bezos comprou o Washington Post em 2013, interessado não em retorno financeiro e muito menos em transformar o diário em uma “voz confiável e independente” (palavras do editorial), mas sim na influência social e política a ser amealhada.
Elon Musk, outro oligarca dono de plataforma, atualizou a manobra de Bezos nove anos depois, ao adquirir o Twitter. O interesse era o mesmo: exercer controle sobre a formação da opinião pública. Em 2013, comprar um jornal já parecia um tanto incongruente; em 2022, óbvio que o alvo seria uma rede de mídia social.
Para Musk, Bezos, Zuckerberg e outros bilionários da tecnologia, um segundo mandato de Trump seria preferível a uma vitória de Kamala Harris. O Republicano vem acenando com promessas de (mais) desregulamentação de diversos setores e (novos) cortes de impostos para os mais ricos. Musk, Peter Thiel, Mark Cuban e os irmãos Winklevoss já embarcaram de mala & cuia na campanha de Trump. Outros magnatas têm sido mais discretos, mas a preferência é inequívoca e 100% previsível.
Em sua cartinha passa-pano, Bezos ainda invoca o mito da imparcialidade jornalística para justificar seu apoio mudo a Trump. “Endossos a candidatos criam uma percepção de falta de independência. Encerrar a prática é uma decisão correta e baseada em princípios (…) Declinar apoio a um dos candidatos não será o suficiente para elevar muito a confiança do público no Washington Post, mas é um passo relevante na direção certa.”
Ora. Imparcialidade jornalística é uma coisa. “Isentismo” e “doisladismo” crônicos são outras, especialmente quando há tanto em jogo. A imparcialidade é uma prática que deve ser exercitada pelas redações dia a dia, e não um ideal platônico a ser lembrado em momentos convenientes. Reconhecer e discutir o perigo que Trump representa para os EUA (e para o mundo) também é jornalismo. Tirar o corpo fora é negar aos leitores do Post a verdade - e a verdade é o verdadeiro negócio do jornalismo, não uma isenção utópica, claramente motivada por interesses pessoais.
Bezos insiste em se classificar como jornalista, mas atuou como dono de plataforma ao intervir em seu próprio jornal. Proprietário do maior sistema de e-commerce do mundo e do maior serviço de cloud computing do planeta, o bilionário acredita ter poderes que superam os do presidente de qualquer país, incluindo os EUA. Nessa linha de raciocínio, ele pode se dar ao luxo de assumir a posição de “isento” em uma eleição. Como todo controlador de plataforma transnacional, acredita estar acima de questões “menores” - ainda que se trate de uma eleição decisiva para o futuro do mundo. E, ao mesmo tempo, tenta disfarçar (mal) suas preferências ideológicas. Ainda assim, as entrelinhas estão lá, para quem sabe lê-las.