NÃO é o identitarismo, estúpido
A "crise" na comunicação da esquerda é mais que uma crise: é um dilema estrutural. E as mídias sociais são o problema, não a solução
“É a economia, estúpido.” - frase cunhada pelo estrategista James Carville como um dos lemas da campanha que levou Bill Clinton à vitória na eleição presidencial norte-americana de 1992. Referia-se à exploração insistente da incapacidade do governo George Bush (1989-1993) de reagir à recessão na economia dos EUA.
“Todo o avanço - e barateamento, clássico-capitalisticamente falando - da tecnologia em ferramentas de produção de imagem / texto funcionou, com a passagem do tempo, como uma alavanca empoderadora das individualidades” - Kayo Iglesias, jornalista especializado em estratégia política e marketing eleitoral.
Certas opiniões têm o poder de se tornarem fatos consumados. Depende de quem opina, depende de quantas vezes a opinião é repetida, depende de quem está repetindo a opinião, depende de quem ouve a opinião. Os brasileiros habituados a discutir política nas plataformas de mídia social certamente já leram alguma variação das seguinte frase:
“O identitarismo está matando a esquerda”
Gente de direita, de centro e de esquerda tem repetido essa opinião há anos, com tamanho afinco e com tanta repercussão, que de opinião passou a ser fato. Resumindo o fio da meada: a atual crise enfrentada pela esquerda se deve à prevalência, entre sua militância, de um tal “discurso identitário” fixado em discussões de gênero e etnia.
Essas falas se tornaram (teriam se tornado?) a principal preocupação de partidos, seus representantes eleitos e militantes, substituindo as tradicionais pautas econômicas, trabalhistas e sociais. E essas questões ~identitárias~ seriam rejeitadas pelo povão, que tem respondido a cada dois anos votando maciçamente em partidos de direita. O magérrimo resultado de PT, PSOL, PDT (ainda é esquerda?) e outras legendas canhotas nas recentes eleições municipais confirmaria a hipótese, completando a transição de opinião para fato.
Eu tenho muitas reservas em relação aos dados apresentados no parágrafo anterior. Antes de apresenta-las, vale um disclaimer: eu não entendo coisa alguma de política e este espaço não foi criado para falar de política. Mas entendo alguma coisa de comunicação. E comunicação é pauta aqui.
Para mim, a ~crise~ na comunicação da esquerda não é uma crise, se pensarmos na definição da palavra. Crise é um momento conjuntural agudo, temporário e excepcional dentro de um dado cenário. A esquerda não passa por uma crise. Os problemas atuais não são conjunturais, e sim estruturais. E esses problemas não se devem à insistência no ~identitarismo~, uma expressão vazia originada na direita e que virou mais um dos espantalhos usados pela própria direita para deslegitimar lutas e discussões movidas por grupos progressistas.
O ~identitarismo~ (e sim, continuarei a usar a expressão entre dois “~”) pode estar em alta nas discussões movidas pela esquerda nos círculos acadêmicos e em intermináveis debates nas mídias sociais. Na vida cotidiana do brasileiro, especialmente daquele brasileiro que mal sabe da existência do X Twitter, é um não-assunto.
Imagine a cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro - que acaba de reeleger, em primeiro turno, um prefeito bolsonarista. Imagine dois cidadãos são-gonçalenses sentados na aprazível Praça Luiz Palmier, discutindo as eleições. “É, não votei na esquerda porque o candidato não parava de falar em direitos reprodutivos, reparação histórica aos descendentes de escravizados e igualdade de oportunidades para transgêneros…” Esta cena nunca aconteceu, nunca acontecerá.
Quantas vezes já lemos por aí expressões como “A esquerda não sabe se comunicar nas redes”, “A direita domina o discurso nas mídias sociais” e variações sobre esses temas? A proposição deveria ser invertida: as mídias sociais é que não servem para propagar as mensagens da esquerda.
Não é do ~identitarismo~ ou de qualquer outra corrente ideológica a responsabilidade sobre a falta de alcance do ideário de esquerda nas plataformas. É, repito, uma questão estrutural. Num mundo no qual toda comunicação é mediada pelas plataformas, a esquerda sempre terá dificuldade para se expressar. Porque a esquerda fala para o coletivo, enquanto as plataformas só se importam com o indivíduo. Mais: a esquerda depende de consenso e tolerância, enquanto as plataformas lucram com o dissenso e a controvérsia.
Nos dias de hoje, as mídias sociais são, a um só tempo, a arena onde a opinião pública é debatida e a própria opinião pública. Emissores, receptores, mensagens e meios se confundem, influenciando o pensamento e o discurso dos atores sociais e reverberando para o mundo real, num feedback interminável.
Toda questão relevante é encampada pelas plataformas de mídia social; de modo complementar, toda questão discutida nas plataformas se torna relevante justamente por ser discutida nas mídias sociais. Essa correlação se tornou, com a chegada dos smartphones e da internet móvel rápida, o mais importante direcionador da comunicação humana contemporânea. É uma atualização da velha provocação filosófica sobre a árvore caindo na floresta. Se um fato importante acontece e ninguém nas plataformas o repercute, esse fato é realmente importante?
WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram, Threads et. al. servem para falar de e aos indivíduos, transmitindo mensagens que apelam ao irracional. A esquerda patina nas plataformas porque busca falar à coletividade, transmitindo mensagens que exigem reflexão. Conceitos abstratos voltados ao coletivo - cidadania, tolerância, igualdade, direitos humanos, responsabilidades do poder público - simplesmente não conseguem competir com discursos formatados para inflamar opiniões e obter reações instintivas. Que, como todos sabemos, são o conteúdo preferido dos algoritmos das plataformas. E, não por acaso, especialidade dos influencers de direita.
Voltemos aos hipotéticos cidadãos de São Gonçalo apresentados lá em cima. Como tantos outros brasileiros periféricos, os são-gonçalenses sofrem com o descaso histórico do poder público e com a ausência da formação de uma consciência cidadã. Quando essas pessoas usam seus smartphones, o que chama a atenção delas não são mensagens positivas sobre valores progressistas. Muito menos os tão demonizados discursos ~identitários~. Serão ataques, acusações e mentiras criadas para gerar engajamento e ganhar tração online. Ou, mais recentemente, promessas mágicas de riqueza e fartura por meio de “empreendedorismo” e “novos mindsets”, voltados à exacerbação do individualismo.
De um lado, há o (muito real) mundo cão pintado pela direita, que faz todo o sentido para quem o vive na pele cotidianamente. De outro o blá-blá-blá dos coaches e influencers, que seduzem ao acenar com um empoderamento que o estado e a coletividade não podem prover. Diante disso, as mensagens progressistas parecem, na melhor das hipóteses, descoladas da realidade. Na pior, uma demonstração de hipocrisia politicamente correta.
Então não é a nova esquerda ~identitária~ quem está matando a velha esquerda ~social~ nas redes. O buraco é muito mais embaixo. Toda a esquerda está se afogando neste admirável pântano novo das plataformas, construído para valorizar o ego e fragmentar o coletivo. Por ser estrutural, o desafio parece ainda mais intransponível. A esquerda pode mudar seu discurso para competir em iguais condições com a nova direita plataformizada? Se sim, ainda poderá ser chamada de esquerda?
Gostaria de encerrar o texto com respostas. Mas, como já disse, não entendo coisa alguma de política.
P.S.: escrevi este post logo após o segundo turno das eleições municipais e o engavetei. De lá para cá, aconteceu um negócio meio chato lá nos Estados Unidos da América do Norte. Tenho lido bastante material repercutindo a vitória de Trump: razões sociais, políticas e históricas que levaram os EUA a reelegê-lo. Pertinentemente a este post, o site The Atlantic publicou um artigo muito interessante em 07/11, intitulado “Os eleitores de Trump conseguiram o que queriam”. Traduzo abaixo alguns trechos que tangenciam os pontos do meu escrito:
“No fim, a maioria dos eleitores americanos escolheu Trump porque queriam o que ele estava vendendo (grifo meu): um reality show non-stop de raiva e ressentimento (….) Desavenças raciais, insatisfação diante das atribulações da vida (…) e ressentimento dirigido às vis elites de cidades distantes não podem ser aplacados com políticas de habitação popular ou cortes nas taxas de juros.
Nenhum candidato pode oferecer propostas políticas e fatos a eleitores que não têm interesse real nessas coisas. Esses eleitores gostam das promessas de vingança social que escorrem de Trump, da retórica de machão, das soluções simplistas do tipo ‘Eu vou dar um jeito nisso’”.
Esse é o tipo de comunicação política que interessa às plataformas de mídia social: raiva e ressentimento, vingança e soluções simplistas. A esquerda não tem como oferecer isso. Se tem, já deixou de ser esquerda.
Muito bom texto Barbosa. Só discordo da parte que eleitores não têm opiniões odiosas ao pensarem seus votos, principalmente se levarmos em conta o ódio promovido nas redes sociais. Vejamos o caso em que o vereador mais votado de São Paulo se elegeu só atacando pessoas trans, sem projeto algum para a cidade. Ao votar, eleitores talvez não levem em conta os problemas reais que vivem mas levam seus preconceitos e ressentimentos.