O ESG chegou à novela das nove da Globo
'Vale Tudo' tem um personagem interessado em 'práticas sociais, ambientais e de governança'. E o interesse da emissora no tema, até onde vai?
Cultivo uma lista razoavelmente extensa de maus hábitos. Essa lista não inclui assistir à TV aberta. Ligo apenas para ver jogos de futebol e corridas de Fórmula 1; quando tenho tempo, dou uma olhada no noticiário local. Mesmo afastado, me foi impossível ignorar a estreia, na rede Globo, do remake da novela Vale Tudo, cuja versão original era acompanhada por minha família, pelos idos de 1988-89. Em 2025, pessoal aqui em casa tem assistido ao folhetim, e eu dou umas olhadas de quando em nunca.
Pois no sábado passado (12/04), estava eu assistindo-sem-assistir ao capítulo da novela, quando uma frase saída da TV capturou minha atenção.
“Claro que eu sei dessa palestra que o Afonso vai dar hoje”, disse o personagem Renato (João Vicente de Castro). “ESG. É a especialidade do Afonso: práticas ambientais, sociais e de governança. Inclusive esse foi o tema do pós-doc dele”. Imediatamente entrei em estado de alerta, qual um cão perdigueiro.
A anunciada palestra não mereceu mais que um minuto em cena. Neste vídeo, a coisa rola partir dos 30:46. Relembremos a íntegra do fragmento do discurso de Afonso Roitman (Humberto Carrão) exibido em Vale Tudo:
"(Está) cada vez mais claro que o crescimento individual de uma empresa está diretamente ligado aos efeitos sociais e ambientais que ela gera. Cada vez mais as pessoas se dão conta de que gastar dinheiro é dar a opinião delas. O cliente não quer só comprar; o cliente quer se identificar."
Afonso parecia, até ali, ser pouco mais que um sorridente herdeiro playboy. Retornou ao Brasil após longa temporada na Europa, pratica triatlo e não entende por que sua namorada Solange (Alice Wegmann) precisa trabalhar tanto (dica: ela não é herdeira). Se eu tivesse lido algum texto sobre a novela antes da estreia, eu já saberia que Afonso pretende transformar a empresa familiar “em algo mais justo, inclusivo e ecológico”. ESG pra burro!
Não sei se foi a primeira vez que uma novela global citou o termo ESG. O que importa: o debate na sociedade sobre a sigla cresceu a ponto de merecer uma menção na novela das 21h, conforme já rolou no passado com tópicos como consumo de drogas, transição de gênero, homofobia, racismo e outros.
Por outro lado, a Globo também costuma só dar luz a um determinado assunto quando o tema já foi explorado à exaustão em outros meios. É como se a emissora esperasse a coisa se tornar um fato consumado, digerido por toda a audiência, para então se arriscar a menciona-la em uma novela.

Voltando a Vale Tudo, não dá para afirmar muita coisa a partir do breve discurso de Afonso mostrado na novela. A fala é meio desconjuntada: começa abordando a necessidade de as empresas considerarem aspectos socioambientais em suas estratégias de geração de valor, um conceito básico de sustentabilidade corporativa. Mas na sequência mira o discurso nos clientes, resumindo (de forma um tanto tosca) a ideia de consumo consciente e o aumento da preocupação da sociedade com os impactos ligados às marcas que consomem.
Se pensarmos no copo meio cheio, é uma vitória ver a sigla apresentada no horário nobre da dramaturgia da Globo. Considerando o retrospecto de reticência da emissora ao tratar de temas contemporâneos potencialmente polêmicos, a coisa muda de figura. Vale lembrar as idas e vindas na apresentação de temas como relacionamentos homoafetivos e outras tentativas meio atabalhoadas de incorporar inovações sociais e comportamentais, fracassos que certamente contribuem para a hesitação de roteiristas & diretores.
Na real, as novelas da Globo sempre foram um espaço de choques entre imperativos ideológicos, econômicos e artísticos. Ao mesmo tempo que retratavam avanços e retrocessos detectados no comportamento da população, os folhetins telemáticos também sempre foram pautados por agendas não alinhadas, que refletem os interesses da direção da emissora e das equipes de criação.
O Grupo Globo - o leviatã que reúne redes de TV, jornais, portais web, serviços de streaming, emissoras de rádio etc. - insiste em tentar conciliar o irreconciliável. Como porta-voz da família Marinho, seus conteúdos (ficcionais, jornalísticos ou que seja) precisam espelhar os interesses econômicos e políticos do clã controlador - que pendem ao liberalismo na economia e à “direita esclarecida”, no campo político. Só que as pautas ESG são um domínio do progressismo, assim como as representações de diversidade étnica e de gênero que vêm ganhando mais e mais espaço na tela da Globo.
Esse jogo de empurra tem apresentado, nas últimas décadas, diversos paradoxos para os Estúdios Globo. Ao mesmo tempo que houve avanços em temas como a representatividade de pessoas negras e a normalização de discussões de gênero, as novelas seguiram sendo ferramentas de manutenção de visões de mundo antiquadas e maniqueístas. Frequente alvo de críticas reacionárias por sua ~lacração~ em pautas de gênero e etnia, a emissora mantém os dois pés atrás quando se trata de questionar as estruturas do establishment e os imperativos da economia de mercado.
Daí a separação irreconciliável. É contraditório manter uma programação conservadora em política & economia e progressista nos costumes. O “cérebro” da Globo, representado pelo jornalismo, defende o estado mínimo, glorifica o livre mercado e sataniza as ideologias de esquerda. O “coração” - a teledramaturgia - quer retratar um Brasil mais diverso, igualitário e tolerante. Mas o pragmatismo do “cérebro” se choca diretamente com o idealismo do “coração”. Livre mercado e conservadorismo político não contribuem para a diversidade e para a tolerância - muito pelo contrário. E isso também vale para as temáticas ESG.
Uma caminho mais provável para o ESG em Vale Tudo é o tratamento superficial. ESG é um conceito complexo, com múltiplas ramificações e possibilidades de debate. Imaginar uma discussão séria do tema em uma telenovela das 21h é pedir demais. O interesse de Afonso Roitman pelas “práticas ambientais, sociais e de governança” vai acabar se tornando mais uma pequena particularidade. Ou, no jargão dos roteiristas gringos, um quirk, uma característica menor que torne o personagem menos unidimensional. Como seu interesse por triatlo.

Por muitas décadas, a teledramaturgia da Globo foi uma importante peça nas mudanças do zeigeist sociocultural brasileiro. Hoje, em pleno domínio da internet na era da economia da atenção, sua influência diminuiu mas ainda persiste.
No contexto da sustentação do establishment brasileiro, as novelas precisam manter um equilíbrio delicado. Os autores devem prestar atenção à realidade corrente, para manter a contemporaneidade (e a plausibilidade) das tramas. Por outro lado, sempre é necessário manter um subtexto conservador, especialmente em temas comportamentais e socioeconômicos. Os donos da Globo, membros de uma das famílias mais ricas do país, definitivamente não gostariam de ver o carro-chefe da programação instigando questionamentos que pudessem levar seus espectadores a tomar alguma atitude inaceitável. Tipo considerar qualquer espécie de pensamento mais à esquerda.
A atual versão de Vale Tudo não escapa a essas contradições. A moralidade simplista da trama é, mais do que conservadora, conformista. Tensões de classe e anseios por ascensão social são transformados em caricaturas. Dois únicos caminhos são apresentados aos pobres: o alpinismo sem qualquer escrúpulo (Fátima) ou o trabalho duro de baixo valor agregado, fantasiado de “empreendedorismo” (Raquel).
As narrativas de ambas as protagonistas desafiam a suspensão de descrença, mas o arco vivido por Raquel chega a soar cômico. Literalmente do dia para a noite, a personagem consegue confeccionar - sozinha! - centenas de sanduíches “naturais”, que se tornam sucesso instantâneo de vendas. A mensagem é óbvia como o discurso de um coach: esforço e retidão de caráter sempre serão recompensados. Basta perseverar (com o mindset correto). Por outro lado, se o desfecho original for preservado, restará a desgraça à arrivista Fátima, retribuição por sua atitude “vale tudo”. É como se o Código Hayes ainda estivesse em vigor.
Se Afonso Roitman quer mesmo entrar na seara ESG, eu - como consultor em sustentabilidade - tenho uma recomendação urgente para ele. Comece pelo topo - pelo CEO da empresa da família, o pérfido Marco Aurélio (Alexandre Nero). O executivo é um showroom ambulante de más práticas sociais, ambientais e de governança. Para começar, o sujeito pratica assédio moral com todos os subordinados. Está envolvido em esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação e tráfico de influência. E já foi visto pelo menos uma vez usando um helicóptero para se deslocar de casa para o trabalho - elevando a pegada de carbono e o volume de emissões gerado pela companhia.
O primeiro passo para transformar o negócio familiar dos Roitman “em algo mais justo, inclusivo e ecológico” é meter uma justa causa no Marco Aurélio.
Nenhuma menção ao fato de Afonsinho ter saído logo após sua palestra engana trouxa dirigindo seu possante movido a combustível fóssil poluente? Então você desligou a TV rápido demais. Afinal, se fosse mesmo sério, o incrível Afonsinho (pós-doc com meros 32 anos!) teria ido se exibir para desavisados se equilibrando sobre um patinete 🛴 elétrico. Pois é
Mas como você não vê a novela, perdeu Ivan, o terrível, ensinando a nobre Raquel em jantar romântico que... "o capitalismo não liga pra ninguém". Sim, essa pérola militante de constranger foi vomitada sem cerimônia alguma pelo retardado em jantar que se pretendia romântico.
Como se vê, vale mesmo tudo por um mundo melhor
Pfui
Eu achei interessantíssimo eles colocarem isso na nova versão, tô muito curioso pra ver onde vai dar. Adorei a análise, não li nada parecido em lugar nenhum.