Às vezes, o indivíduo está louco no empreendedorismo
Da startup bilionária à prisão em flagrante, o ex-CEO da Hurb sintetiza o que há de mais tóxico no mundo corporativo

João Ricardo Mendes voltou ao noticiário na semana passada. Não por seu trabalho como CEO da plataforma de viagens Hurb - ele deixou a liderança da empresa em 2023, no auge de uma crise enorme. As manchetes sobre o executivo saíram das páginas de economia e inovação e moveram-se para a seção policial.
O sujeito foi preso em flagrante por roubo. Passando-se por funcionário de uma firma de manutenção, Mendes invadiu um hotel e um escritório de arquitetura. Levou obras de arte, um tablet e até a carteira de um dos arquitetos. À polícia, alegou, sem apresentar evidências, que as vítimas dos crimes deviam dinheiro a ele. Como isso fosse justificativa.
Em 2013, a Hurb orgulhava-se de ter “a fanpage de turismo mais curtida no Facebook em todo o mundo”. Três anos depois, chegou a um valor de mercado estimado em R$ 2,6 bilhões. Agora, depois de uma série de pendengas judiciais, calotes e bate-bocas públicos entre o ex-CEO e clientes lesados, a empresa foi impedida pelo governo de operar.
A ascensão irresistível e o catastrófico pouso forçado de Mendes nos dão a oportunidade de examinar uma verdadeira praga do atual mundo dos negócios: o empreendedorismo tóxico.
As tresloucadas cabriolas do fundador da Hurb são explicadas (mas não justificadas) quando se entende que ele é um empreendedor tóxico. Esse personagem, muito presente na mídia social -especialmente no LinkedIn, claro - leva a mentalidade grind & hustle até as últimas consequências. Não raro, essas últimas consequências envolvem prisão, falência e até morte. É um mindset virtualmente indistinguível da sociopatia… aplicado à gestão de negócios.
Vou usar a partir daqui o pronome masculino, dada a avassaladora maioria de homens no contingente abordado. O empreendedor tóxico é o sonho de todo coach corporativo. E o pesadelo de qualquer um que tenha o azar de ser seu subordinado.
Ele acredita ser capaz de torcer os imperativos do mercado apenas com a força de vontade. Ele crê ser abençoado pelos deuses da inovação, do sucesso e da fortuna, e por isso detém o monopólio da razão. Ele enxerga a ética empresarial e a conformidade legal como obstáculos a serem superados (ou apenas ignorados). Ele é workaholic ao extremo e exige que seus comandados trabalhem ainda mais do que ele. Ele considera que toda empresa, independentemente de seu porte ou segmento de atuação, deve ser gerenciada como uma startup: sempre em modo sobrevivência, sempre buscando a disrupção radical, sempre projetando taxas exponenciais de crescimento, sempre demandando sangue, suor e lágrimas dos colaboradores.
O contexto socioeconômico que vivemos neste século XXI é muito propício à ascensão de empreendedores tóxicos. A plataformização possibilita a evolução rápida de modelos de negócio inovadores - mesmo que consumidores e investidores nem entendam direito como o negócio funciona. A digitalização dos processos de trabalho permite que as pessoas sejam produtivas por mais horas (e o patrão sempre vai exigir mais produtividade). O marketing digital e as mídias sociais são usados para recriar a realidade, transformando estratégias delirantes em “fatos” viralizáveis.
O empreendedor tóxico se aproveita disso tudo para convencer o mundo de sua genialidade, ao mesmo tempo que arranca o couro dos funcionários e promete aos clientes algo que não pode entregar. O lema “mova-se rápido e quebre coisas” , lançado por Mark Zuckerberg, é sua única diretriz de planejamento estratégico. Nessa toada, ele acaba quebrando pessoas e empresas também. (Falo por experiência própria, porque já trabalhei sob as ordens de um deles.)
Quem só conhecia a face pública de Mendes e sua trajetória como empresário deve ter se espantado com a prisão do cara. Mas bastava ter lido esta reportagem da coluna Capital, de O Globo, para entender as atitudes do ex-CEO. A matéria, publicada em 2024, mais ou menos um ano depois da implosão da Hurb, trazia o diagnóstico de um empreendedor tóxico de almanaque.
Além de relembrar as infames postagens de Mendes nas mídias sociais e aplicativos de mensagens, a reportagem de O Globo mostrava a rotina de assédio moral que vigorava nos escritórios da Hurb. Detalhava as erráticas guinadas na gestão da empresa, com decisões influenciadas pelo uso de drogas como Ritalina e Venvanse. (No depoimento à polícia após a prisão, o ex-CEO lançou a cartinha “estava sob efeito de remédios controlados” para ~explicar~ seu surto criminoso.) E não deixava de lembrar a principal referência adotada no comportamento e no estilo de administrar de Mendes: Elon Musk. Quem mais?
Em sua fase mais aguda, o empreendedorismo tóxico pode embaralhar os limites entre imaginação e realidade e jogar o paciente em um estado terminal de negação. Principalmente quando as coisas começam a dar errado e o sujeito começa a questionar sua própria infalibilidade, antes inabalável. Com bolinhas tarja preta no meio, então… Daí para começar a se achar acima da lei - ou ao menos capaz de driblar a polícia - é um pulinho.
Bastava ler a matéria do Globo para prever que daria nisso. Ou em algo pior.
O pior aconteceu com um amigo meu.
Ele desejava, há anos, conhecer o Japão. Em 2023, reuniu-se a um pequeno grupo de camaradas e todos buscaram pacotes de viagem aérea + hospedagem para Tóquio, com antecedência de quase dois anos. A antecipação no planejamento permitiu que achassem preços ótimos de passagens & hotel, oferecidos pela plataforma Hurb.
Quando chegou a hora de emitir os bilhetes e confirmar os quartos reservados, não havia nem bilhetes nem quartos disponíveis. Cerca de dois anos depois de pagar pela viagem que não fez, meu amigo (e seus ex-futuros companheiros de turismo) não viajou, nem foi reembolsado. Mesmo depois de ter processado judicialmente a Hurb, ainda não viu a cor do dinheiro. Ele e mais de cem mil pessoas no país todo.
Meu amigo foi um dos 12 mil (!) cariocas que caíram no conto do pacote com data flexível, um dos principais ingredientes na receita de sucesso da Hurb - originalmente Hotel Urbano, empresa fundada em 2011. Em poucos anos, a empresa comandada por João Ricardo Mendes disparou no mercado online de viagens, com uma agressivíssima estratégia de marketing digital.
A pandemia de Covid feriu de morte o segmento de turismo em todo o mundo, mas a Hurb faturou R$ 3 bilhões em 2020, o triplo do arrecadado em 2019. A plataforma apostou tudo nos pacotes flexíveis, vendidos a preços baixos para serem usados em dois ou três anos.
Deu certo. Deu tão certo, que acabou dando errado. A Hurb vendeu um número de pacotes flexíveis tão grande, que não havia como honrar todas as reservas no prazo prometido. Faltaram avião e hotel para tanto turista. De “fanpage mais curtida”, passou a ser uma das campeãs de denúncias no site Reclame Aqui. A empresa também virou alvo de parceiros e fornecedores que tomaram calote.
Aí vem “o pior” a que me referi lá em cima.
O pior é que, segundo a apuração de O Globo, Mendes sabia que a Hurb não conseguiria atender a todos os clientes. E mesmo assim, seguiu vendendo pacotes a preços irresistíveis, transformando intencionalmente a empresa em uma espécie de esquema de pirâmide. Quem conseguiu viajar antes do desabamento, conseguiu. Quem não conseguiu, não consegue mais.
“Ele só pensou em vender, nunca em como honrar os pacotes. Quando os problemas começaram, simplesmente não dava ouvidos. Todas as estratégias sugeridas para honrar pacotes, como alterações e oferta de opções aos clientes, ele rejeitava. Questionava os números de breakeage (consumidores que desistem de viajar), dizia que as pessoas iam morrer ou esquecer os pacotes” — fonte anônima citada na reportagem de O Globo.
Quer dizer: bem antes de ele ir em cana, a toxicidade de João Ricardo Mendes já causava muito estrago por aí. Antes de roubar obras de arte e um iPad (e uma carteira), ele havia roubado uma galera enooooooooorme. Esse descaso criminoso com os próprios clientes é o ápice da toxicidade.
Picaretagem sempre existiu, sempre existirá. Mas antes da internet e das plataformas, seria impossível a um cara como Mendes chegar tão longe. Na internet, querer é poder, e imaginar é fazer. Nas plataformas, o sucesso e a aparência de sucesso são a mesma coisa - e dependem apenas das métricas de engajamento. Ambientes mais que propícios para a proliferação do empreendedorismo tóxico.

Comecei a ler despretensiosamente e não consegui parar...parabéns pela escrita dinâmica, informativa e espontânea!